Aprovado pelo FDA: Novo Regime de PrEP de Longa Duração e suas Implicações
- Alma Mater Cosméticos
- 23 de jun.
- 31 min de leitura
Em junho de 2025, o FDA (agência regulatória dos EUA) aprovou um novo regime de profilaxia pré-exposição (PrEP) contra o HIV: o lenacapavir injetável de longa duração, comercializado pela Gilead Sciences sob o nome Yeztugo. Trata-se do primeiro medicamento para PrEP que oferece proteção de seis meses com apenas uma dose, ou seja, duas injeções subcutâneas por ano.
Esse fármaco inovador pertence a uma nova classe terapêutica – é um inibidor de capsídeo do HIV-1, com um mecanismo de ação multissetorial distinto dos antirretrovirais tradicionais. Ao se ligar à proteína capsídeo (p24) do vírus, o lenacapavir interfere em etapas essenciais da replicação viral, incluindo a entrada do DNA viral no núcleo da célula, a montagem e liberação de novos vírus e a formação adequada do core do capsídeo. Em outras palavras, ele “trava” a cápsula que envolve o material genético do HIV, impedindo que o vírus se instale e se multiplique nas células humanas. Por atuar em etapas diferentes das dos medicamentos atuais, o lenacapavir é considerado primeiro em sua classe.
Como ele difere das opções atuais de PrEP? Até então, as opções aprovadas de PrEP baseavam-se principalmente em antirretrovirais orais diários da classe dos inibidores de transcriptase reversa análogos de nucleosídeo (como tenofovir e emtricitabina, presentes no Truvada® e Descovy®) ou, mais recentemente, em injeções de ação prolongada a cada dois meses de um inibidor de integrase (cabotegravir, marca Apretude®, da ViiV).
O lenacapavir traz várias novidades em relação a esses regimes:
PrEP de Longa Duração: Uma única dose de lenacapavir protege por seis meses, superando o cabotegravir (doses bimestrais) e as pílulas diárias. Isso representa conveniência e potencial melhoria na adesão, já que reduz drasticamente a frequência de doses necessárias.
Via de administração: O lenacapavir é aplicado por injeção subcutânea (sob a pele, por exemplo no abdômen), e há estudos indicando a possibilidade de autoadministração pelo próprio paciente. Já o cabotegravir exige injeção intramuscular (glúteo) aplicada por profissional de saúde, e as pílulas exigem uso diário rigoroso.
Classe do medicamento: Por ser um inibidor de capsídeo, seu alvo é diferente dos medicamentos atuais (que inibem a enzima transcriptase reversa ou integrase). Isso significa que o lenacapavir age em pontos distintos do ciclo viral e pode oferecer uma opção para pessoas que não se adaptaram ou não podem usar as opções anteriores.
Eficácia nos estudos: Em ensaios clínicos de Fase 3 com milhares de participantes, o lenacapavir mostrou eficácia extraordinariamente alta, com zero infecções por HIV registradas no grupo que recebeu o medicamento (2.134 participantes) contra várias infecções no grupo controle em PrEP oral diária, demonstrando superioridade estatística sobre o Truvada diário. Segundo a revista Science, que elegeu o lenacapavir como “Avanço Científico do Ano de 2024”, a eficácia observada chegou a ~99,9% em homens cis e pessoas trans que fazem sexo com homens, e 100% de proteção em mulheres cisgênero nos estudos (nenhuma infecção). Ou seja, trata-se de um resultado sem precedentes, superando inclusive a eficácia já alta do cabotegravir injetável (que reduziu em 66% a incidência de HIV em homens que fazem sexo com homens e 89% em mulheres, comparado à PrEP oral nos estudos HPTN 083/084).
Perfil de segurança: Até o momento, o lenacapavir apresentou boa tolerabilidade. Alguns efeitos adversos incluem reações no local da injeção, porém uma parcela mínima (cerca de 0,2–1,2% dos participantes) descontinuou o uso por esse motivo nos ensaios. Isso é possivelmente menos frequente ou menos intenso do que o observado com cabotegravir, no qual dor e nódulos no local da injeção intramuscular foram relativamente comuns. Além disso, diferentemente do tenofovir, o lenacapavir não apresenta toxicidades conhecidas para rins ou ossos, um ponto relevante considerando que o uso prolongado de tenofovir (TDF) pode causar disfunção renal e redução da densidade óssea em alguns casos.
Para resumir as diferenças, a tabela a seguir compara os principais regimes de PrEP disponíveis ou em desenvolvimento e suas características:
Opção de PrEP | Tipo e frequência | Eficácia (estudos clínicos) | Considerações |
Truvada (TDF + FTC) – Gilead | Comprimido oral diário | ~99% de eficácia com adesão alta (estimada ~86% em uso real) | Amplamente adotado desde 2012; pode causar efeitos renais/ósseos em longo prazo. |
Descovy (TAF + FTC) – Gilead | Comprimido oral diário | Eficácia não inferior ao Truvada (estudo em HSH e trans) | Aprovado em 2019; não indicado para sexo vaginal receptivo (ausência de dados). |
Cabotegravir LA (Apretude) – ViiV/GSK | Injeção intramuscular a cada 2 meses (após doses iniciais mensais) | Redução de 66% (HSH/trans) e 89% (mulheres) na incidência vs. oral | Aprovado em 2021 (EUA); aplicação por profissional de saúde; dor no local de aplicação é comum. |
Lenacapavir LA (Yeztugo) – Gilead | Injeção subcutânea a cada 6 meses | ~100% de proteção observada (0 infecções em 2.134 usuários) | Aprovado em 2025 (EUA); potencial autoadministração no abdômen; requer teste de HIV antes de cada dose (para evitar resistência). |
Legenda: TDF = tenofovir (fumarato de tenofovir disoproxila); TAF = tenofovir alafenamida; FTC = emtricitabina; HSH = homens que fazem sexo com homens.
Implicações clínicas da aprovação – um novo patamar na prevenção do HIV
A aprovação do lenacapavir de longa duração marca um divisor de águas na prevenção do HIV. Clinicamente, o principal benefício é expandir o leque de opções de PrEP, aumentando as chances de atender às necessidades de diferentes perfis de pacientes. Alguns pontos-chave das implicações clínicas:
Melhoria da adesão e persistência em PrEP: Sabe-se que a eficácia da PrEP depende criticamente da adesão. Regimes diários enfrentam desafios. Muitas pessoas esquecem doses ou abandonam o uso por dificuldade de manter a rotina, barreiras logísticas ou estigma.
No Brasil, por exemplo, embora a oferta pública de PrEP oral tenha crescido, estima-se que cerca de 40% dos usuários abandonam a profilaxia oral em algum momento. Os motivos incluem a necessidade de visitas frequentes ao serviço de saúde para testes e coleta de pílulas, a obrigação de tomar comprimidos diariamente no mesmo horário e o estigma de ter um medicamento associado ao HIV em casa.
Nesse contexto, uma injeção semestral pode contornar muitos desses obstáculos: a pessoa precisa comparecer à clínica apenas duas vezes por ano para receber a dose, não precisa lembrar de um comprimido diário e pode manter a prevenção de forma discreta. Especialistas acreditam que o lenacapavir “poderia ser a opção transformadora de PrEP que estávamos esperando – com potencial de impulsionar a adesão e persistência”.
Em populações vulneráveis, como jovens em situação de risco, trabalhadores do sexo, pessoas trans ou usuárias de drogas, que frequentemente enfrentam dificuldades adicionais para manter regimes diários, essa praticidade extra pode significar mais gente mantendo-se protegida continuamente.
Alta eficácia e proteção consistente: Os dados clínicos do lenacapavir trazem otimismo. Manter praticamente 100% dos participantes livres do HIV nos estudos indica não só a potência do fármaco, mas também que, quando a prevenção é simplificada, a eficácia real se aproxima da eficácia teórica do medicamento. Mesmo Truvada e cabotegravir, altamente eficazes, tiveram alguns casos de infecção nos braços de estudo, muitas vezes atribuídos a falhas de adesão (no caso do Truvada) ou à exposição durante janelas sem cobertura completa.
Com o lenacapavir, não houve infecções enquanto a dose estava ativa. Essa consistência de proteção é especialmente valiosa para populações vulneráveis com alta incidência de HIV, pois cada prevenção falha representa risco de infecção e, por consequência, necessidade de tratamento vitalício. Vale destacar que a eficácia robusta foi demonstrada tanto em homens que fazem sexo com homens e pessoas trans (no estudo PURPOSE 2) quanto em mulheres cisgênero africanas (estudo PURPOSE 1), segmentos populacionais em que historicamente houve desafios de adesão com PrEP oral. Portanto, clinicamente o lenacapavir se mostra relevante para diversos grupos epidemiológicos.
Necessidade de acompanhamento rigoroso (testagem e educação): Uma implicação clínica importante é reforçar os protocolos de testagem para HIV antes e durante o uso da PrEP injetável. O lenacapavir vem com um alerta de segurança: ele não pode ser usado em pessoas já infectadas pelo HIV, sob risco de desenvolver resistência viral. Assim, antes de iniciar o regime é obrigatório confirmar sorologia HIV negativa, e antes de cada injeção semestral repetir o teste de HIV. Isso porque, caso o indivíduo tenha adquirido HIV e receba uma dose de lenacapavir isoladamente (sem terapia combinada apropriada), o vírus poderia se replicar na presença do fármaco e gerar mutações de resistência.
Clinicamente, isso demanda dos serviços de saúde vigilância e educação contínua: os usuários de PrEP injetável precisam compreender a importância de não faltar às consultas de acompanhamento e testagem. Além disso, deve-se orientá-los sobre práticas seguras adicionais, já que a PrEP protege apenas contra o HIV, outros ISTs (infecções sexualmente transmissíveis) ainda requerem prevenção (preservativos, por exemplo).
Potencial para reduzir novas infecções em escala populacional: Lideranças da luta contra a AIDS veem essa aprovação como um passo importante para dobrar a curva da epidemia. Daniel O’Day, CEO da Gilead, afirmou que o lenacapavir “é a ferramenta mais importante que já tivemos para mudar o curso da epidemia e colocar o HIV nos livros de história”. Essa confiança decorre da ideia de que, se conseguirmos levar essa inovação às populações-chave em larga escala, poderemos reduzir drasticamente a incidência anual de infecções (hoje estimada em ~1,3 milhão de novas infecções por ano globalmente).
Populações vulneráveis, como homens que fazem sexo com homens em comunidades com alta prevalência, mulheres jovens na África Subsaariana, pessoas trans, profissionais do sexo e outras, poderiam se beneficiar de um método quase infalível e de longa duração – tornando viável a meta de Zero novas infecções proposta pela ONU (UNAIDS) para 2030. Contudo, essa promessa depende de fatores para além da eficácia clínica, como veremos a seguir.
Desafios e oportunidades de acessoà PrEP de Longa Duração: preço, infraestrutura e desigualdades regionais
A aprovação regulatória nos EUA é apenas o primeiro passo. Transformar essa inovação em impacto real de saúde pública exigirá superar uma série de desafios de acesso, especialmente em países de renda baixa e média, onde a carga de HIV é elevada.
Nesta seção, analisamos os principais desafios e oportunidades relacionados ao preço do medicamento, infraestrutura de saúde disponível e desigualdades regionais, com foco especial no Brasil e no Sul Global.
Preço proibitivo vs. custo sustentável
Atualmente, o maior obstáculo apontado para a ampla disponibilização do lenacapavir é seu preço extremamente alto nos mercados de alta renda. A Gilead anunciou um preço de lista de US$ 28.218 por pessoa ao ano nos EUA. Esse valor, equivalente a mais de R$ 135 mil anuais, causou alarme entre ativistas e organizações internacionais. Estudos de farmacoeconomia indicam que o custo de produção de uma versão genérica do lenacapavir seria inferior a US$ 50 por ano/pessoa em escala industrial.
Uma pesquisa publicada na Lancet HIV estimou que, com demanda de 5 a 10 milhões de pessoas, o custo poderia cair a cerca de US$ 25 por pessoa/ano, ou seja, menos de 0,1% do preço listado nos EUA. Diante dessa discrepância, a diretora-executiva da UNAIDS, Winnie Byanyima, declarou ser “incompreensível” justificar US$28 mil anuais para um medicamento que poderia ser produzido por dezenas de dólares. Ela alertou que, se esse remédio revolucionário permanecer inacessível, ele não revolucionará nada – não terá impacto na epidemia. A UNAIDS, em comunicado oficial, instou a Gilead a “fazer a coisa certa: abaixar o preço, expandir a produção e garantir que o mundo tenha uma chance de acabar com a AIDS”.
Para países em desenvolvimento, preços na casa de dezenas de milhares de dólares por paciente ao ano são simplesmente inviáveis. Por exemplo, o Brasil possui cerca de 960 mil pessoas vivendo com HIV e uma taxa anual de novas infecções em torno de 40 mil casos (dados aproximados). O orçamento público de saúde, apesar do compromisso com tratamento universal, não comportaria custear uma profilaxia de altíssimo custo para todos em risco.
Reconhecendo isso, a Gilead anunciou uma estratégia de acesso global diferenciada: firmou acordos de licenciamento voluntário e sem royalties com seis fabricantes de genéricos (Dr. Reddy’s, Mylan/Viatris, entre outros) para produzirem versões genéricas de longa-ação destinadas a 120 países de baixa e média-baixa renda.
Nesses países elegíveis, concentrados na África, Ásia e algumas partes da América Latina, a Gilead promete fornecer o lenacapavir a preço de custo (no-profit) até que os genéricos desses licenciados estejam disponíveis. Estimativas sugerem que o preço “sem lucro” ficaria na faixa de US$ 150–200 por pessoa/ano nesses locais.
Trata-se de um avanço em relação aos US$28 mil, mas ainda significativamente acima do custo técnico mínimo (US$25–40) e mesmo acima do custo da PrEP oral já em uso (por exemplo, a África do Sul paga cerca de US$40 por ano por paciente em PrEP oral genérica). Entretanto, grandes regiões ficaram de fora desse acordo de genéricos. Em especial, muitos países de renda média, que têm epidemias significativas de HIV, não estão entre os 120 beneficiados – o Brasil é um destes casos.
O critério da Gilead focou em “países de baixa e média-baixa renda” e alta incidência; países de renda média alta como Brasil, México, Argentina, Peru e outros não foram incluídos, apesar de alguns terem participado ativamente dos ensaios clínicos do lenacapavir. Essa exclusão suscita preocupações de desigualdade regional: justamente locais com epidemias concentradas em populações-chave e sistemas públicos robustos (que poderiam implementar a PrEP injetável) podem ficar para trás no acesso por alguns anos.
Vale notar que, historicamente, o Brasil negociou inclusão em iniciativas de acesso (por exemplo, para antirretrovirais de primeira linha nos anos 2000), mas nem sempre com sucesso imediato devido ao seu status econômico intermediário e mercado grande.
No caso do lenacapavir, o Ministério da Saúde brasileiro já sinalizou que não aceitará pagar os valores de mercado praticados nos EUA ou Europa para uso como PrEP. O Dr. Draurio Barreira, diretor do Departamento de HIV/AIDS e IST do Ministério, destacou que o preço americano (US$42 mil anuais, referente ao uso do lenacapavir no tratamento de resgate) é “proibitivo” e que, para prevenção, com uma base potencial de usuários muito maior, o preço terá de ser outro.
Um estudo liderado pelo pesquisador Andrew Hill (Universidade de Liverpool) calculou que um preço em torno de US$ 94 por paciente/ano seria plausível para países em desenvolvimento, considerando custos de produção e uma margem razoável. O Brasil tem usado tais evidências em sua estratégia de negociação.
Infraestrutura de saúde e capacidade de implementação
Outro desafio é traduzir a disponibilidade teórica do medicamento em programas efetivos no mundo real. A PrEP injetável traz demandas logísticas e de infraestrutura distintas das da PrEP oral:
Sistema de aplicação periódica: Será necessário ter clínicas ou serviços capazes de administrar injeções subcutâneas semestrais em potencialmente dezenas ou centenas de milhares de pessoas. No SUS (Sistema Único de Saúde) brasileiro, por exemplo, a PrEP oral é oferecida em centros de referência e algumas unidades básicas, mas não está disponível em todas as cidades.
A expansão para PrEP injetável exigiria treinar profissionais, garantir insumos (agulhas, seringas, espaço refrigerado para estocagem se necessário) e agendar retornos semestrais. A vantagem é que a frequência é baixa (duas vezes por ano), o que pode aliviar a carga comparado a, por exemplo, um injetável mensal. Ainda assim, uma agenda de adesão deve ser criada, talvez com auxílio de sistemas de informação, SMS lembretes ou aplicativos, para lembrar os usuários de comparecerem às doses semestrais, sob risco de perda de proteção.
Testagem e monitoramento contínuos: Conforme mencionado, a segurança do regime depende de testagem de HIV de 6/6 meses. Isso implica que a infraestrutura deve integrar serviços de diagnóstico rápido ao fluxo (testes rápidos de 4ª geração ou NAT para detectar infecção recente).
Os laboratórios e profissionais precisam estar preparados para lidar rapidamente com eventuais resultados positivos, encaminhando para tratamento e com aconselhamento em caso de exposição de risco entre doses (por exemplo, fornecer PEP, profilaxia pós-exposição, se uma pessoa em PrEP atrasou a injeção e teve exposição ao vírus).
Aceitação e preparo da comunidade: A implementação efetiva passa também por ações de educação e comunicação. Muitos usuários em potencial talvez nunca tenham ouvido falar de PrEP injetável. Será preciso explicar que a injeção não é uma vacina (ou seja, a proteção depende de mantê-la periodicamente, não induz imunidade permanente) e que ainda é necessário prevenir outras ISTs.
No Brasil, a experiência com a vacina HPV ou mesmo com tratamentos injetáveis de outras doenças pode ser aproveitada para mostrar os benefícios da comodidade semestral. Além disso, combater eventuais mitos ou medos de injeção é necessário , embora os estudos apontem boa aceitação, algumas pessoas podem recear agulhas ou efeitos colaterais locais.
Integração com serviços existentes: Uma oportunidade é integrar a oferta do lenacapavir em clínicas já atuantes em prevenção e tratamento de HIV. Centros de testagem e aconselhamento, clínicas de saúde sexual e serviços de atenção especializada em HIV/Aids poderiam ser pontos de aplicação. Isso aproveita equipes experientes e infraestrutura existente (por exemplo, geladeiras, sistemas de agendamento).
No Brasil, onde o SUS já provê antirretrovirais de forma centralizada, incorporar a PrEP injetável pode ser factível nos grandes centros; o desafio será capilarizar para o interior e regiões remotas. Talvez parcerias com ONGs comunitárias e clínicas móveis auxiliem a levar as injeções a populações como profissionais do sexo em zonas de garimpo, usuários de drogas em comunidades, etc.
Em suma, a infraestrutura terá de evoluir, mas a natureza de longa ação do medicamento pode tornar essa evolução manejável: com duas visitas ao ano por paciente, muitos sistemas de saúde consideram isso implementável, especialmente se houver financiamento para os insumos e pessoal.
Países do Sul Global com sistemas de saúde menos robustos precisarão de apoio técnico e financeiro (por exemplo, via programas do PEPFAR e Global Fund) para estabelecer a oferta do injetável. Felizmente, há esforços iniciais: o PEPFAR e o Fundo Global anunciaram em 2024 planos de financiar PrEP injetável para até 2 milhões de pessoas em países de baixa renda nos próximos 3 anos, em parceria com a Fundação Gates e outros doadores.
A OMS, por sua vez, está agilizando diretrizes e pré-qualificação: prometeu lançar novas diretrizes internacionais sobre o uso do lenacapavir como PrEP em julho de 2025 e fast-track na avaliação técnica, para orientar países na incorporação segura e eficaz dessa estratégia. Esses movimentos indicam uma oportunidade de coordenar esforços globais para implementação.
Desigualdades regionais: foco no Brasil e no Sul Global
O caso do Brasil exemplifica tanto oportunidades quanto desafios nas desigualdades de acesso. O Brasil historicamente é referência em respostas à AIDS, foi um dos primeiros a oferecer tratamento antirretroviral universal e gratuito nos anos 1990, e desde 2017 oferece PrEP oral pelo SUS.
No entanto, por ser um país de renda média-alta, frequentemente enfrenta o “vazio” entre o mundo desenvolvido (que pode pagar caro por novas tecnologias) e os países mais pobres (que recebem apoio internacional e licenças facilitadas). Com o lenacapavir, não será diferente:
A Gilead já solicitou registro na Anvisa (agência regulatória brasileira) para o uso do lenacapavir em PrEP. De acordo com o Ministério da Saúde, a empresa se comprometeu a entrar com o pedido formal em março de 2025. A expectativa é que a Anvisa analise com prioridade (até pelo status de “breakthrough” lá fora). Mesmo assim, os trâmites regulatórios e burocráticos significam que a aprovação no Brasil deva ocorrer ao longo de 2025.
Incorporação no SUS: Após o registro sanitário, o medicamento precisa passar pela avaliação da CONITEC (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias) para ser introduzido no protocolo do SUS. O próprio Ministério da Saúde admite que antes de 2026 dificilmente conseguiria ofertar o lenacapavir amplamente. Isso porque, além das aprovações, há a negociação de preço e aquisição.
O governo já iniciou negociações com a Gilead buscando um acordo de preço justo ou até um licenciamento voluntário específico para o Brasil. Autoridades brasileiras apontam a contradição de o Brasil não ter sido incluído nas licenças voluntárias internacionais, apesar de ter contribuído significativamente para a pesquisa (um terço dos participantes de um dos estudos de PrEP eram brasileiros).
Essa exclusão se deve, conforme mencionado, à presença de patentes da Gilead em vigor no Brasil, o que bloqueia legalmente a produção de genéricos locais até pelo menos 2041 (20 anos de vigência). Países como Índia e Argentina, sem patentes concedidas, foram incluídos nos acordos de genéricos, enquanto o Brasil ficou de fora.
Soberania e pressão política: O Brasil, por meio de seu Programa de IST/AIDS e organizações da sociedade civil (como a ABIA – Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS), defende a formação de alianças globais por acesso à PrEP injetável e tem pressionado a Gilead a estender licenças ou praticar preços diferenciados para países de renda média.
Há um embate ético-político subjacente: de um lado, o interesse público em ampliar o acesso a uma tecnologia crucial; de outro, o interesse de mercado da farmacêutica em salvaguardar lucros. Veriano Terto Jr., vice-presidente da ABIA, ressalta que negociar com o Brasil não é o mesmo que com a Índia: “O Brasil tem um mercado de 220 milhões de pessoas, 1 milhão de soropositivos e só o governo para negociar. É mais fácil as farmacêuticas fazerem valer seus interesses”, ou seja, pressionarem por preços altos, pois não há múltiplos compradores competindo.
Esse conflito já levou o Brasil, no passado, a medidas drásticas: em 2007, diante de preços abusivos, o governo emitiu licença compulsória do efavirenz, quebrando a patente e produzindo localmente o genérico para o SUS. Foi um marco de enfrentamento às big pharma. No caso atual, porém, o governo brasileiro sinalizou que não pretende adotar a quebra de patente do lenacapavir – por considerar que seria “desrespeitar uma norma do comércio internacional” e poderia gerar insegurança jurídica para o país. A estratégia preferida é o diálogo para um acordo mutuamente aceitável. Ou seja, o Brasil busca um meio-termo onde a Gilead ceda em preço ou licencie produção local, evitando um embate legal como em 2007.
No restante do Sul Global, veremos diferenças: países de baixa renda na África e Ásia, com apoio de doadores, possivelmente começarão a receber o lenacapavir genérico entre 2025-2026 em programas piloto financiados externamente. Já países latino-americanos e outros de renda média ficarão dependentes de negociações individuais.
Isso aumenta o risco de desigualdade no acesso a uma tecnologia de ponta: os locais com mais recursos ou apoio terão a PrEP injetável disponível anos antes que outros. Por exemplo, é possível que África do Sul, Quênia ou Nigéria (países foco dos doadores) implementem lenacapavir antes de países da América Latina que não têm financiamento internacional para PrEP e precisam arcar sozinhos (caso do Brasil, México etc.).
Essa assimetria preocupa a ONU e a OMS; ambas enfatizam a necessidade de solidariedade global para que a inovação não fique restrita. A OMS, em seu posicionamento após a aprovação na FDA, chamou o feito de “progresso importante” mas alertou que sem compromisso de acesso equitativo, o progresso científico não se traduz em vidas salvas.
Em síntese, o desafio de acesso combina economia e capacidade de implementação. Oportunidades existem: a pressão internacional sobre preços, os acordos de licenciamento com genéricos, o envolvimento de financiadores globais e a prontidão de muitos sistemas de saúde para inovar dão esperança de que, nos próximos anos, o lenacapavir possa começar a beneficiar populações do Sul Global.
No Brasil, especificamente, o sucesso dependerá de um equilíbrio entre firmeza e cooperação – usar seu histórico de protagonismo em AIDS para conseguir condições adequadas, sem abrir mão do que for necessário para proteger suas populações-chave.
Impacto nas políticas públicas, estratégias de prevenção e papel de startups e corporações no ecossistema de saúde brasileiro
A chegada de uma nova tecnologia de prevenção como o lenacapavir traz reflexos importantes nas políticas de saúde pública e na dinâmica do setor de saúde, tanto público quanto privado.
Exploraremos como essa inovação pode moldar políticas governamentais de prevenção, influenciar estratégias adotadas e qual pode ser o papel de startups e corporações de saúde no Brasil nesse contexto.
Políticas públicas e estratégias de prevenção: rumo à diversificação e ampliação
Nas políticas de HIV/AIDS, há um consenso crescente de que é preciso oferecer um “menu” abrangente de opções preventivas para atingir diferentes públicos e preferências. A introdução da PrEP oral já alterou estratégias nos últimos anos, adicionando-se às ferramentas clássicas (camisinhas, teste e tratamento imediato, redução de danos etc.). Com o lenacapavir, as autoridades de saúde terão a oportunidade de expandir ainda mais as estratégias combinadas de prevenção:
Atualização de diretrizes e protocolos: Assim que aprovado e disponível, o lenacapavir deverá ser incorporado às diretrizes nacionais de prevenção. O Ministério da Saúde brasileiro provavelmente emitirá protocolos sobre quem deve receber a PrEP injetável (por exemplo, populações prioritárias: HSH, trans, trabalhadores do sexo, casais sorodiferentes, jovens em alta vulnerabilidade), como ofertar (centros especializados inicialmente, talvez expandindo a atenção básica gradativamente) e requisitos (testagem, consentimento informado sobre o caráter inovador, etc.).
Essa inclusão formal é crucial para que estados e municípios possam planejar programas e orçamentos. Países vizinhos e outros de renda média também enfrentarão debates semelhantes. A OMS, como citado, planeja fornecer orientações globais em breve, o que ajudará a embasar políticas nacionais.
Expansão do alcance da prevenção: Com uma opção semestral, abre-se a chance de recrutar para a prevenção pessoas que não aderiram à PrEP oral. Isso pode influenciar metas e indicadores dos programas. Por exemplo, o Brasil tem uma meta de aumentar significativamente o número de pessoas em PrEP para contribuir na redução de novas infecções. Porém, esbarra em limites de adesão da pílula diária (atualmente ~110 mil pessoas usam PrEP no país, número ainda aquém do potencial).
A política pública pode direcionar esforços de comunicação para divulgar a nova opção – campanhas publicitárias, mobilização em redes sociais e parceria com ONGs comunitárias – enfatizando que “se tomar todo dia é difícil, agora existe uma alternativa de 2 vezes ao ano”.
Ao atingir novos segmentos com essa mensagem, espera-se ampliar o público engajado em PrEP. Estratégias de prevenção poderão ser reestruturadas para oferecer a opção preferida de cada indivíduo, aumentando a efetividade global: alguns continuarão preferindo a autonomia do comprimido diário (especialmente se não tiverem acesso fácil a clínicas semestrais), enquanto outros migrarão para a injeção.
Enfoque nas populações-chave e redução de desigualdades internas: Políticas poderão direcionar o lenacapavir prioritariamente a populações com maior incidência de HIV ou maiores dificuldades com métodos atuais. Por exemplo, mulheres jovens cisheterossexuais em algumas regiões do Brasil (Norte/Nordeste) têm taxas de infecção crescentes e baixa adesão a PrEP oral, possivelmente por questões culturais e de gênero. Uma estratégia pública pode priorizar introduzir a PrEP semestral nesses grupos, em projetos-piloto, para avaliar o impacto.
O mesmo vale para populações trans, que às vezes relutam em tomar comprimidos diariamente devido a interações com terapia hormonal ou medo de revelar sua condição sexual a familiares. Oferecer uma injeção discreta semestral, dentro de um ambiente acolhedor, pode ser transformador. Assim, a inovação permite personalizar políticas a nichos, com potencial de reduzir disparidades: quem não se beneficiava do método anterior pode se beneficiar do novo.
Meta de fim da epidemia: Em linha com iniciativas como a “Ending the HIV Epidemic” e metas da ONU (95-95-95, entre outras), as políticas públicas podem integrar o lenacapavir em planos de eliminar a transmissão do HIV. Por exemplo, algumas cidades ou estados podem adotar a meta de “nenhuma nova infecção em X anos” focando em alta cobertura de PrEP combinada (oral + injetável).
O Brasil defendeu internacionalmente uma aliança global para acesso à PrEP injetável em 2024 justamente por entender que, sem democratizar inovações, não será possível acabar com a AIDS até 2030. Em resumo, a política se ajusta para incorporar a melhor ciência disponível na busca de objetivos de saúde pública ambiciosos.
Papel do setor privado, startups e corporações de saúde
No ecossistema de saúde brasileiro, tradicionalmente o setor público lidera a resposta ao HIV. Contudo, a inovação do lenacapavir também abre espaço para atuação de startups de saúde, empresas e parcerias público-privadas de forma complementar:
Startups e healthtechs focadas em PrEP/adesão: Poderemos ver startups desenvolvendo soluções tecnológicas para suporte à PrEP injetável. Por exemplo, aplicativos móveis que gerenciem o calendário do usuário, enviam lembretes da próxima injeção, agendam automaticamente consultas e até oferecem teleorientação.
Já existem healthtechs no Brasil que atuam em prevenção e acompanhamento de pacientes (incluindo serviços de telemedicina em HIV/PrEP). Com a chegada da PrEP semestral, essas empresas podem adaptar suas plataformas para atender a essa nova necessidade de acompanhamento de longo prazo.
Além disso, startups podem trabalhar na educação digital: criando conteúdo informativo, chatbots para tirar dúvidas sobre PrEP, e comunidades online para troca de experiências, diminuindo ansiedades e estigma. Tudo isso complementa a oferta clínica do SUS, mantendo os usuários engajados e informados.
Clínicas privadas e serviços corporativos: Enquanto o SUS não incorporar o lenacapavir (ou para além da sua capacidade), o setor privado possivelmente entrará em cena. Planos de saúde e clínicas particulares poderão importar ou adquirir o medicamento (uma vez registrado) para oferecer a clientes que podem pagar. Embora o custo seja alto, existe uma parcela de clientes de saúde suplementar ou particulares de alta renda que podem demandar acesso imediato.
Isso pode criar um mercado privado de PrEP injetável inicial , semelhante ao que ocorreu com alguns antivirais de última geração, disponíveis primeiro em clínicas e hospitais privados. Startups poderiam explorar modelos de assinatura de PrEP, por exemplo: um serviço em que o cliente paga uma mensalidade que cobre a consulta médica, os exames periódicos e, a cada seis meses, a aplicação do lenacapavir. Corporações de saúde (hospitais privados, redes de laboratório) também podem se envolver fornecendo locais para aplicação e integrando a PrEP em seus programas de atenção primária.
É importante que, mesmo nesses contextos comerciais, haja alinhamento com as diretrizes oficiais para garantir segurança e que os dados (por exemplo, novos casos de HIV evitados ou eventuais falhas) sejam comunicados para vigilância epidemiológica.
Parcerias e responsabilidade social corporativa: Grandes farmacêuticas, incluindo a própria Gilead, bem como fundações empresariais, podem desempenhar um papel por meio de programas de acesso e educação. A Gilead, por exemplo, anunciou nos EUA um programa de co-pagamento e doação para indivíduos sem seguro, garantindo que até os sem plano de saúde possam acessar o Yeztugo gratuitamente.
No Brasil, apesar do sistema público, poderíamos imaginar colaborações em que a Gilead apoie estudos de implementação, doando um certo número de doses para projetos demonstrativos em populações-chave, ou treinando profissionais de saúde via programas educacionais. Outras corporações com atuação em saúde pública (como fundações e ONGs apoiadas pelo setor privado) podem financiar campanhas de sensibilização sobre a nova ferramenta, reduzindo o estigma e aumentando a demanda informada. Isso beneficia o ecossistema como um todo, quanto maior a consciência e a demanda, mais pressão positiva para acelerar a oferta no SUS.
Inovação local e produção nacional: Um capítulo relevante será se alguma corporação ou instituição brasileira conseguirá produzir localmente o lenacapavir no futuro. Dado o patenteamento, isso dependerá de acordos ou do vencimento da patente. Instituições como a Fiocruz/Farmanguinhos historicamente produziram genéricos de antirretrovirais para o SUS, e empresas nacionais de genéricos têm capacidade tecnológica.
Caso a negociação entre governo e Gilead inclua transferência de tecnologia ou licenciamento para produção no Brasil (ainda que apenas para consumo interno do SUS), isso fortaleceria a autonomia do país e poderia até abastecer a região sul-americana. Embora não haja indicação concreta disso até o momento e a Gilead tenha excluído o Brasil das licenças voluntárias globais, continua sendo uma possibilidade estratégica a médio prazo, especialmente se o preço permanecer proibitivo.
Startups de biotecnologia nacionais também podem, em tese, pesquisar moléculas análogas ou formas alternativas de administração (por exemplo, formulações de implante subdérmico de longa duração com lenacapavir já foram cogitadas em pesquisas). Tudo isso colocaria o Brasil não só como consumidor, mas como ator no desenvolvimento do ecossistema de prevenção de última geração.
Em resumo, a chegada do lenacapavir deve estimular tanto o setor público quanto privado a inovar: políticas públicas ajustando-se para incorporar a novidade e maximizar seu impacto, e players privados e startups criando soluções de apoio, ampliando acesso em nichos e complementando onde o poder público demora a chegar.
O objetivo final, compartilhado entre todos, é reduzir a transmissão do HIV. Se cada ator cumprir seu papel – governo garantindo equidade e escala, corporações colaborando com preços e programas, startups facilitando a vida do usuário, o ecossistema de saúde brasileiro pode dar um salto de qualidade na prevenção do HIV.
O que ainda falta na luta contra o HIV/AIDS: vacina e cura, os desafios persistentes
Apesar de todo o entusiasmo em torno da PrEP injetável de longa duração, é crucial lembrar que ela não representa a cura do HIV nem uma vacina. Trata-se de mais uma ferramenta preventiva altamente eficaz, um avanço enorme, mas a luta contra a epidemia ainda tem lacunas importantes que permanecem sem solução definitiva.
Aqui refletimos sobre o que ainda falta e os desafios científicos em curso, especialmente no desenvolvimento de uma vacina preventiva e uma cura para o HIV.
A busca por uma vacina eficaz
Quarenta anos se passaram desde a descoberta do HIV, e até hoje não há vacina preventiva aprovada contra o vírus. Diversas tentativas chegaram a fases avançadas, porém todas fracassaram em demonstrar eficácia satisfatória. Em janeiro de 2023, por exemplo, foi interrompido o estudo de fase 3 Mosaico, apoiado pela Janssen (Johnson & Johnson), que testava um esquema vacinal em milhares de voluntários em vários países (inclusive no Brasil). Uma análise interina revelou que a vacina não protegia contra o HIV melhor que placebo. Foi mais uma decepção que se somou a outras: desde os anos 2000, pelo menos oito grandes ensaios de vacinas chegaram à fase 3 e nenhum obteve sucesso significativo.
Isso ilustra a tremenda complexidade: o HIV é um vírus com alta variabilidade genética, capaz de mutar rapidamente e de evasão imunológica. Ele ataca justamente o sistema imunológico, tornando a indução de imunidade duradoura extremamente difícil. Como descreveu a pesquisadora Dra. Brenda Crabtree, “em 40 anos só conseguimos chegar a oito testes de fase 3, todos com resultados decepcionantes... o HIV é o patógeno mais difícil de derrotar”.
Entretanto, não há desistência. A comunidade científica segue explorando novas abordagens: vacinas de nova geração usando vetor de mRNA (tecnologia que se mostrou exitosa na COVID-19) estão em fase inicial de estudo para HIV; imunógenos amplamente neutralizantes (capazes de estimular anticorpos contra múltiplas cepas do vírus) também estão em pesquisa.
Enquanto a vacina não vem, os especialistas reforçam que devemos usar tudo que já funciona – e é aí que entra a importância de ferramentas como a PrEP (oral ou injetável), a testagem e tratamento (indetectável = intransmissível) e educação sexual. A eventual chegada de uma vacina eficaz simplificaria enormemente a prevenção, mas após tantos reveses, a estratégia global é não ficar na dependência dela.
A palavra de ordem tem sido: continuar tentando desenvolver vacinas, mas não contar com elas a curto prazo. Portanto, a inovação do lenacapavir supre, em parte, a ausência da vacina, oferecendo uma forma de prevenir infecções com alta eficácia, porém ainda precisamos desse “Santo Graal” para declarar vitória completa.
O desafio da cura definitiva
Outra frente de batalha é a busca pela cura do HIV. Hoje, o tratamento antirretroviral consegue controlar o vírus a ponto de torná-lo indetectável e não transmissível, mas ele continua latente no organismo. O HIV instala-se em “reservatórios virais”, células de longa vida (como células T de memória, macrófagos, tecidos como linfonodos e cérebro) onde o DNA do vírus fica integrado de forma dormente. Os medicamentos atuais não eliminam esses reservatórios. Assim, se o tratamento é interrompido, o vírus volta a se replicar.
A cura esterilizante (eliminação total do vírus do corpo) mostrou-se extremamente difícil. Até hoje, apenas alguns casos excepcionais, famosos “pacientes de Berlim”, “de Londres” e outros, alcançaram uma cura funcional após transplantes de medula óssea de doadores resistentes ao HIV. Esses procedimentos são arriscados e não replicáveis em larga escala.
Para uma cura ampla, pesquisas exploram diversas estratégias:
“Chutar e matar” (kick and kill): medicamentos ou agentes que “acordam” o HIV latente nos reservatórios (kick), para então eliminá-lo via resposta imunológica ou terapias direcionadas (kill). Ensaios com drogas reversoras de latência + anticorpos neutralizantes estão em andamento, mas até agora não erradicaram o vírus completamente.
Edição genética: uso de ferramentas como CRISPR para remover o DNA proviral das células ou tornar as células imunes à infecção (por exemplo, editando o gene CCR5 nas células T do paciente). Já houve estudos iniciais, inclusive um primeiro teste em humanos com CRISPR em 2022, mas é uma fronteira ainda em estágio experimental.
Imunoterapia e anticorpos de larga ação: tentar induzir o sistema imune a controlar o vírus sem medicação contínua. Alguns pacientes em estudos conseguiram remissão prolongada do HIV após receberem anticorpos amplamente neutralizantes combinados, mas a maioria ainda apresentou rebote viral após certo tempo.
O Dr. José Valdez Madruga, pesquisador brasileiro que coordenou estudos do lenacapavir no país, ressaltou que o lenacapavir não é a cura da AIDS e nem pretende ser. Ele explicou que para curar seria necessário eliminar o vírus latente dos reservatórios, algo que o lenacapavir não faz. O medicamento age apenas impedindo novas infecções de células, mas não “varre” o vírus do corpo.
Além disso, não se trata de uma vacina. Ele não treina o sistema imune, apenas bloqueia o vírus diretamente. Essas distinções sublinham que, mesmo com PrEP de longa duração e tratamentos excelentes, a infecção pelo HIV continua incurável no indivíduo, e precisamos continuar investindo em ciência para, quem sabe um dia, conseguir curar definitivamente as ~39 milhões de pessoas que vivem com HIV no mundo.
Em resumo, falta-nos ainda a vacina e a cura, os dois sonhos desde o início da epidemia. As dificuldades encontradas até agora mostram a resiliência do vírus e a necessidade de persistência científica. Enquanto esses objetivos não se concretizam, cada novo avanço (como o lenacapavir na prevenção, ou novas classes de antirretrovirais no tratamento) é fundamental para manter o controle da epidemia e salvar vidas. Mas não podemos confundir um grande progresso – por mais celebrável que seja, com o fim do caminho. O combate ao HIV/AIDS continua, impulsionado por inovações como essa, mas ciente dos obstáculos remanescentes.
Implicações éticas, regulatórias e comerciais do domínio das grandes farmacêuticas
A aprovação do lenacapavir e todo o debate em torno de seu acesso trazem à tona uma questão maior: o papel e o domínio das grandes farmacêuticas no campo do HIV – e as implicações éticas, regulatórias e comerciais disso. Vejamos algumas reflexões:
Monopólios de inovação e acesso desigual
Medicamentos inovadores como o lenacapavir são fruto de investimentos maciços em P&D, em grande parte feitos por grandes empresas (no caso, Gilead Sciences). Em reconhecimento a isso, o sistema global de patentes garante a essas empresas um monopólio temporário de comercialização (geralmente 20 anos). Do ponto de vista comercial, isso permite retorno financeiro e incentivo à inovação. Porém, do ponto de vista de saúde pública global, cria a situação em que uma única entidade controla quem pode produzir e a que preço, potencialmente por décadas, mesmo que vidas estejam em jogo.
Éticamente, há um conflito: até que ponto é aceitável que um avanço científico crucial para acabar com uma epidemia fique fora do alcance de milhões por causa de considerações de mercado? O caso do lenacapavir exemplifica isso, a Gilead detém as patentes em países-chave (como o Brasil), excluindo-os de licenças de genéricos. A empresa se comprometeu com licenças em países mais pobres e preço “no-profit” nesses locais, o que é louvável, mas foi além apenas até onde seus interesses permitiam.
Países “ricos demais” para receber genéricos baratos, mas “pobres demais” para pagar preços altos, ficam num limbo. Esse padrão já foi visto com outros medicamentos (por exemplo, os novos antivirais de hepatite C, ou mesmo cabotegravir). Internacionalmente, discute-se se seria necessária uma reforma nas normas de patentes ou nos mecanismos de preços para situações de saúde pública, por exemplo, usar mais frequentemente licenças compulsórias (o que envolve aspectos regulatórios e diplomáticos sensíveis) ou criar acordos multilaterais para definir preços máximos em certos países. No momento, contudo, as big pharma ainda ditam as regras iniciais, cabendo a governos e organismos internacionais reagir caso a caso.
Responsabilidade social vs. interesse dos acionistas
Empresas farmacêuticas frequentemente apontam suas iniciativas de acesso como prova de responsabilidade social (como as licenças voluntárias sem royalties da Gilead, ou doações). Sem dúvida, tais medidas ampliam o alcance dos medicamentos e salvam vidas. Porém, elas são decisões voluntárias das empresas, não obrigações.
Isso significa que ficam sujeitas a considerações comerciais: mercados lucrativos tendem a não ser incluídos, negociações podem ser duras (países às vezes aceitam cláusulas restritivas para obter pequenas concessões de preço). A ética entra na discussão quando se questiona: um medicamento preventivo que pode acabar com uma doença pandêmica deveria ser tratado como mercadoria comum ou como bem público global?
A UNAIDS, em seu comunicado, enfatizou que o lenacapavir é resultado de “décadas de investimento público, excelência científica e contribuições de comunidades e voluntários”. Ou seja, embora a empresa tenha desenvolvido, houve financiamento governamental e participação de milhares de pessoas nos testes.
Isso sugere que há um dever moral de torná-lo amplamente disponível. Byanyima, da UNAIDS, foi enfática ao dizer que se permanecer caro e inacessível, “não mudará nada” no curso da epidemia. Empresas têm por princípio o dever de gerar lucro aos acionistas, mas também operam num setor de forte impacto social. Essa tensão é permanente e se reflete nas negociações com governos: no caso brasileiro, vemos a busca de um “preço justo” em vez de imposições, ou seja, apela-se à razoabilidade da companhia e ao interesse de longo prazo em ter um produto amplamente utilizado (o que, aliás, pode ser bom também para os negócios, se preços menores permitirem volumes muito maiores).
Regulação e velocidade de aprovação global
O FDA deu aprovação rápida ao lenacapavir, com priority review e breakthrough designation, reconhecendo a importância. Porém, outros países dependem de suas próprias agências regulatórias (como a ANVISA no Brasil, EMA na Europa, etc.) ou esperam guias da OMS.
Aqui, o domínio das grandes farmacêuticas se manifesta de outra forma: a disponibilidade de dados e o interesse de submissão regulatória. Se a empresa decide não submeter registro num país (por achar o mercado pouco lucrativo, por exemplo), aquele país fica sem opções até que um genérico seja possível anos depois.
Felizmente, Gilead anunciou submissões regulatórias amplas, incluindo Brasil, Austrália, Canadá, África do Sul etc., em parte devido à pressão global. Mas já houve casos de medicamentos que demoraram a chegar a certos mercados por falta de iniciativa da detentora.
Reguladores de países do Sul Global enfrentam ainda o desafio de rapidamente avaliar e aprovar um produto complexo, às vezes sem acesso completo a todos os dados (que a empresa tende a submeter primeiro nos EUA/Europa). A OMS, ao preparar diretrizes e prequalificação, atua para mitigar essas assimetrias, servindo de referência para que países confiem nos dados de outros e não atrasem a adoção.
Do ponto de vista ético, espera-se que as farmacêuticas colaborem com as autoridades regulatórias globalmente, submetendo dossiês de qualidade e participando de mecanismos colaborativos (como AVAREF na África, ou outras coalizões de agências) para acelerar aprovações em países de menor capacidade regulatória.
Comercial: impacto na concorrência e inovação futura
A introdução do lenacapavir também tem implicações comerciais na paisagem concorrencial da prevenção ao HIV. Até então, Gilead dominava o mercado de PrEP com Truvada/Descovy, mas estava prestes a perder exclusividade do Truvada (que já tem genéricos) e enfrentava a concorrência do cabotegravir (Apretude) da ViiV.
Com o lenacapavir, a Gilead recupera protagonismo, pois oferece um produto com atributos superiores e patenteado. Haverá consequências estratégicas: a ViiV/GSK talvez acelere pesquisa de próxima geração (quem sabe um cabotegravir trimestral ou outra molécula) para não perder espaço. Outras empresas podem investir em alternativas (Merck tinha um candidato, islatravir, que está em estudos mas enfrentou problemas de segurança em 2021).
Para o usuário final e sistemas de saúde, concorrência costuma ser benéfica, idealmente, vários fabricantes competindo levariam a preços menores. Porém, neste nicho de prevenção de ponta, temos poucos players e cada um com produto único (monopólio temporário de cada classe). Assim, a dinâmica comercial tende a ser de coopetição e acordos.
Por exemplo, Gilead licenciando genéricos pode mantê-la como fornecedora “de marca” nos países ricos e de renda média (cobrando alto), enquanto permite genéricos em países pobres (onde ViiV também fez um acordo parecido para cabotegravir com o Medicines Patent Pool). Essas grandes corporações acabam definindo entre si como o mercado global será segmentado.
Isso levanta questões regulatórias e éticas sobre transparência: seria importante que os termos desses acordos (quais países incluídos/excluídos, critérios) fossem claros e sujeitos a revisão de órgãos internacionais, para evitar injustiças e influência indevida.
Papel da sociedade civil e advocacy
Por fim, cabe notar que o domínio das big pharma não é absoluto, historicamente, pressão de ativistas, ONGs e organismos internacionais forçou mudanças significativas.
Nos anos 2000, a luta pelos genéricos de primeira linha de HIV mudou para sempre a forma como empresas licenciam medicamentos em países pobres.
Hoje, com o lenacapavir, já vemos essa pressão desde o dia um de aprovação: UNAIDS publicamente exigindo preço justo, grupos como a ABIA no Brasil pedindo inclusão em licenças, e até artigos em grandes jornais questionando a política de preços (um título no The Guardian chegou a chamar o lenacapavir de “medicamento para acabar com o HIV” que poderia custar US$25 mas corre risco de ser inacessível). Esse escrutínio público é parte das implicações éticas, manter as empresas responsáveis diante do impacto global de seus produtos.
Em conclusão, as grandes farmacêuticas como Gilead desempenham um papel duplo: motor da inovação (graças a investimentos e capacidade científica) e guardiã do acesso (por deter patentes e suprimento). Equilibrar lucro e saúde pública é o dilema central.
No caso da PrEP de longa duração, estamos vendo uma mobilização para que esse equilíbrio penda para o lado da vida e da equidade: que o “bolo” dos benefícios da ciência seja repartido o mais amplamente possível. Reguladores, ONGs, governos e as próprias empresas precisam colaborar, e por vezes confrontar, para garantir que o domínio comercial não impeça o domínio da epidemia. Somente assim a aprovação inovadora do lenacapavir poderá cumprir seu potencial de entrar para a história como um ponto de virada no combate ao HIV/AIDS, e não como mais um exemplo de tecnologia salva-vidas inacessível a quem mais precisa.
A aprovação do lenacapavir, novo regime de PrEP de longa duração da Gilead, marca o fim de uma etapa de promessas e o início de outra repleta de possibilidades transformadoras na prevenção do HIV. Com apenas duas aplicações anuais oferecendo proteção quase total, esse avanço traz esperança renovada, mas também nos desafia: como integrá-lo de forma equitativa ao ecossistema de inovação em saúde no Brasil e no Sul Global?
Fiel à missão do Instituto Brasileiro de Inovaçãoem Saúde - IBIS de promover diálogo qualificado entre inovadores em saúde, convidamos você a refletir conosco e a compartilhar nos comentários suas opiniões, experiências ou propostas. Que futuro você vislumbra para a prevenção do HIV no Brasil e no Sul Global?
Referências:
Gilead Sciences. Yeztugo® (lenacapavir) Is Now the First and Only FDA-Approved HIV Prevention Option Offering 6 Months of Protection. Comunicado de imprensa, 18 de junho de 2025.
Reuters. US FDA approves Gilead's twice-yearly injection for HIV prevention. 18 de junho de 2025.
Wikipedia (Lenacapavir). Mechanism of action – descrição da ação do inibidor de capsídeo; History – reconhecimento do lenacapavir como Breakthrough of the Year (Science, 2024) e dados de eficácia; Economics – preço nos EUA e estimativas de custo genérico.
Medscape (em português). Lenacapavir não deve ser incorporado ao SUS antes de 2026. Washington Castilhos, 21 de janeiro de 2025. – Entrevista com Ministério da Saúde sobre registro na Anvisa e incorporação; discussão de preço nos EUA (US$42 mil) vs. necessidade de preço menor para PrEP; estudo de Andrew Hill sugerindo US$94/ano; acordos de licença voluntária e exclusão do Brasil; comentário da ABIA sobre conflito público x privado; referência à licença compulsória do efavirenz em 2007; posição do governo brasileiro contra quebra de patente do lenacapavir; dados de adesão à PrEP oral no Brasil (110 mil usuários, 40% abandono) e motivos; descrição do regime de injeção (2x ano, 1,5mL, potencial autoadministração no abdome); esclarecimento de que não é cura nem vacina, por Dr. Valdez Madruga; comparação entre cabotegravir e lenacapavir – vantagens de autoadministração, menos dor, dose semestral vs. bimestral; nota de aprovação do cabotegravir no Brasil (2023) porém ainda não disponibilizado no SUS; expectativa de disponibilização de ambos via SUS com negociação.
UNAIDS. Press Release: UNAIDS urges Gilead to drop price of new HIV prevention shot. 18 de junho de 2025 – Destacando aprovação FDA e list price US$28.218; estudo na Lancet HIV sobre custo genérico US$25-35; declaração de Winnie Byanyima sobre necessidade de preço acessível para lenacapavir ter impacto.
International Health Policies Newsletter (Trechos, 2025) – Observações sobre planos do PEPFAR/Global Fund financiar 2 milhões de pessoas com lenacapavir; preço “no-profit” de US$150-200 nos 120 países licenciados vs. US$40 pago por oral na África do Sul; exclusão de países de renda média (Brasil, Peru) do acesso a genéricos apesar de epidemias significativas; menção de diretrizes OMS em elaboração até julho 2025.
HPTN 083/084 – Resultados de eficácia do cabotegravir injetável comparado à PrEP oral: redução de ~66% (HSH e mulheres trans) e ~89% (mulheres cis) nas infecções.
The Guardian. ‘HIV-ending’ drug could be made for just $25 per patient a year, say experts. 17 de junho de 2025 (citado via IHP newsletter).
Matías Loewy, Medscape em português. Interrupção de estudo da vacina contra o HIV causa ‘frustração’, mas não desistência. 21 de fevereiro de 2023 – Detalhes do cancelamento do estudo Mosaico por falta de eficácia; histórico de fracassos de vacinas (8 ensaios fase 3 em 40 anos, todos malsucedidos); depoimentos de pesquisadores enfatizando complexidade e necessidade de continuar tentando.

por Marcio de Paula
Instituto Brasileiro de Inovação em Saúde - IBIS
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