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Startups são o novo eixo da inovação farmacêutica, mas o Brasil ainda não percebeu

startups brasileiras para o mundo
Como o deslocamento global da inovação em saúde redefine o papel das políticas industriais e expõe o atraso da estratégia brasileira

A indústria farmacêutica vive uma inflexão histórica. O modelo que, por meio século, concentrou a descoberta de medicamentos em grandes corporações integradas está se fragmentando. A verticalização, símbolo de força no século XX, cedeu lugar a uma rede descentralizada de pequenas biotechs, laboratórios acadêmicos e startups deep tech que assumem a linha de frente da inovação biomédica. O que parecia desorganização tornou-se método. O novo paradigma da inovação é distribuído, colaborativo e ancorado em risco compartilhado.


Essa transformação, analisada com precisão por Charles H. Reynolds em The New Paradigm in Pharma R&D (ACS Med. Chem. Lett., 2025), revela como o modelo tradicional entrou em colapso sob o peso de sua própria escala. As grandes empresas se tornaram administradoras de portfólios, e não geradoras de conhecimento. A capacidade de inovar migrou para os pequenos. Em 2024, mais de 60% dos novos medicamentos aprovados pela FDA nasceram em biotechs, e os compostos mais inovadores, as terapias first-in-class, vieram quase todos de startups.


No Brasil, porém, o debate sobre inovação ainda se move em outro tempo. Políticas como a Nova Indústria Brasil concentram incentivos nas empresas de grande porte, enquanto o verdadeiro motor da competitividade tecnológica, as startups, segue à margem das prioridades governamentais.


Como já apontamos em artigos anteriores do IBIS Insights, como O impacto do novo marco cambial na balança tecnológica do Brasil e Impulsionando as Deep Techs Brasileiras: Um Mecanismo Inspirado no Bayh-Dole para Spin-offs Universitárias e Inovação Nacional, insistir nesse modelo é perpetuar a dependência. A nova fronteira da saúde e da biotecnologia será conquistada por quem entender que a escala de amanhã se constrói com o risco de hoje.


O novo paradigma da descoberta de medicamentos

O estudo de Reynolds explica como a crise de produtividade das grandes farmacêuticas nos anos 2000 levou à sua reconfiguração. O custo médio por molécula saltou de US$ 800 milhões para mais de US$ 2,5 bilhões, enquanto o número de novos fármacos aprovados caiu quase pela metade. O antigo modelo de P&D interno, hierárquico e isolado, não conseguia mais sustentar a velocidade da ciência.


A resposta foi terceirizar, colaborar e comprar inovação. As empresas começaram a formar redes de pesquisa distribuídas, envolvendo CROs, universidades e startups especializadas em biologia sintética, terapias avançadas ou plataformas de IA. Essa arquitetura mais flexível, segundo Reynolds, passou a produzir resultados mais rápidos e custo-efetivos.


Em 1998, apenas 20% dos medicamentos inovadores vinham de pequenas empresas. Em 2024, esse número superou 60%, segundo a Evaluate Pharma. O fenômeno é tão consistente que as grandes passaram a desenhar seus portfólios com base em aquisições futuras, o que o autor chama de “modelo de inovação por garimpo”. A ciência deixou de estar dentro das corporações para orbitá-las.


Esse movimento também descentralizou a geografia da inovação. Cidades médias com universidades fortes e fundos regionais de investimento, como Cambridge (UK), Basel, Tel Aviv e Toronto, substituíram os antigos monopólios de Nova York e Zurique como centros de descoberta biomédica. A lógica é simples: redes substituíram hierarquias. E nas redes, o pequeno pode liderar.


Anatomia da vantagem das pequenas na inovação farmacêutica

As pequenas empresas não inovam mais por acaso. Elas têm estruturas e culturas que favorecem a descoberta. Reynolds lista três elementos centrais: custo, foco e alinhamento.


Custo. Startups operam com uma proporção de gastos indiretos muito menor. Enquanto grandes farmacêuticas alocam mais de 50% do orçamento de P&D em processos administrativos e regulatórios internos, pequenas biotechs concentram 80% em experimentação científica. Isso permite iterar mais, ajustar mais e falhar mais rápido.


Foco. As grandes empresas, pressionadas por acionistas e múltiplas frentes terapêuticas, diluem seu esforço. As startups fazem o oposto: concentram tudo em uma única hipótese. Essa intensidade gera descobertas radicais e também fracassos. Mas, na média, produz mais inovação relevante por dólar investido.


Alinhamento. Em uma startup de 10 ou 20 pessoas, o CEO e o cientista-chefe compartilham o mesmo objetivo e o mesmo laboratório. A comunicação é direta, as decisões são rápidas e o incentivo é coletivo. Esse modelo elimina o que Reynolds chama de “iceberg organizacional”: a distância entre o que acontece na bancada e o que chega à gestão.


Há ainda um quarto fator: a cultura da interdependência. O ecossistema de inovação atual é formado por vínculos transitórios e parcerias dinâmicas entre startups, universidades e grandes empresas. Essa maleabilidade torna o sistema mais resiliente, adaptável e criativo. A inovação passa a ser um fluxo, não um feudo.


O que o Brasil ainda não aprendeu

Políticas industriais precisam colocar as startups no centro da estratégia. Não há soberania tecnológica sem uma política nacional para deep techs, especialmente nas áreas de saúde, biotecnologia e IA.


E há dados que reforçam essa urgência. Segundo o Deep Tech Radar 2025, da Emerge, o Brasil abriga 952 startups deep techs, das quais 36% atuam em saúde e bem-estar e 27% em agro e alimentos, dois setores que concentram quase dois terços do ecossistema. A biotecnologia é a principal base tecnológica, seguida por IA e materiais avançados, refletindo a confluência entre biodiversidade, ciências da vida e transformação digital.


Cerca de 55% dessas empresas são spin-offs acadêmicas, o que mostra o potencial da ciência brasileira, mas 47% nunca receberam investimento privado e dependem majoritariamente de recursos públicos de fomento, como FAPESP, Finep e Sebrae.


O que falta, portanto, não é conhecimento, mas um ambiente que traduza essa densidade científica em valor econômico e impacto social. E isso não virá de mais editais genéricos, mas de uma política industrial capaz de compreender a lógica de risco que move a inovação deep tech.


Uma política para o século XXI

Uma política nacional para deep techs em saúde precisa ser construída sobre três princípios: risco, coordenação e aprendizado.


Risco, porque startups de base científica exigem tempo e incerteza e o papel do Estado é justamente amortecer o custo dessa incerteza. Coordenação, porque ciência, empresa e governo ainda vivem em silos, e a inovação floresce onde há pontes. Aprendizado, porque políticas de inovação não se desenham de uma vez; elas se iteram, como a própria ciência.


Isso implica criar fundos soberanos de risco voltados à biotecnologia e à IA em saúde, com governança técnica e metas de maturidade tecnológica (TRL). Implica também reformar a regulação, criando sandboxes para terapias avançadas, algoritmos médicos e novos modelos de ensaio clínico. E, sobretudo, implica apoiar a translacionalidade: conectar universidades, hospitais e startups em programas de proof of concept que transformem descobertas em produtos validados.


Modelos bem-sucedidos já existem. O BioInnovation Institute dinamarquês e o Innovate UK Health Catalyst britânico combinam investimento público-privado, coinovação com grandes farmacêuticas e apoio regulatório integrado. São experiências que o Brasil poderia tropicalizar, aproveitando suas universidades, o SUS e sua biodiversidade como diferenciais competitivos.


Os riscos de ignorar a virada

O custo da inércia é conhecido. O Brasil perdeu a corrida da biotecnologia industrial nos anos 2000 e da farmacogenômica nos 2010. Agora corre o risco de repetir o erro com as terapias de fronteira. A dependência tecnológica se aprofunda, e a balança de pagamentos em propriedade intelectual segue deficitária.


Mas ignorar a virada não é apenas um erro econômico, é um erro estratégico. Sem startups fortes em saúde, o país dependerá de importações mesmo para medicamentos essenciais, como insulinas e vacinas de RNA. Além disso, sem mecanismos de apoio ao risco, o talento científico brasileiro continuará migrando para ecossistemas mais receptivos.


É preciso, claro, evitar o outro extremo: a euforia com startups sem sustentabilidade. A taxa global de sucesso em P&D biomédico segue abaixo de 8%. Políticas públicas inteligentes devem amortecer riscos, mas com métricas claras, foco em impacto social e compromissos de reinvestimento em pesquisa local. A inovação de fronteira não é feita de promessas, mas de persistência.


Um novo papel para as grandes empresas

A ascensão das startups não elimina a importância das grandes farmacêuticas, ela a redefine. As big pharmas continuam essenciais para escalar, fabricar e certificar. O desafio é criar sinergias em vez de hierarquias.


Incentivos fiscais à coinovação, fundos de corporate venture, compras públicas de inovação e programas de codesenvolvimento podem alinhar o interesse dos grandes com o potencial dos pequenos. O Brasil já teve ensaios bem-sucedidos nesse sentido, como o COINFAR, que aproximou empresas e universidades no início dos anos 2000. Mas faltou continuidade.


Hoje, um COINFAR 2.0 faria mais sentido do que nunca: uma rede que reúna startups, institutos públicos e a indústria farmacêutica em torno de missões tecnológicas estratégicas, imunobiológicos, IA clínica, bioativos amazônicos. O país tem os atores; falta o roteiro.


De consumidores a produtores de futuro

O novo paradigma da inovação em saúde nos obriga a uma escolha. O Brasil pode continuar como consumidor de tecnologias estrangeiras, dependente de importações e royalties, ou pode se posicionar como produtor de conhecimento.


Startups são hoje o instrumento mais eficaz para transformar ciência em soberania. Mas isso exige políticas que aceitem o risco como parte do processo e tratem a incerteza como ativo. O futuro da indústria farmacêutica não será definido pelo tamanho das plantas fabris, mas pela velocidade de aprendizado e pela coragem de experimentar.


O país que compreender isso primeiro não apenas fabricará medicamentos mas, definirá o rumo da ciência.


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por Marcio de Paula

Instituto Brasileiro de Inovação em Saúde - IBIS

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