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Polilaminina e o Desafio de Elevar a Inovação Biomédica Brasileira além da Promessa

Coletiva de imprensa Cristália - Polilaminina
Fotomontagem - original pelo Laboratório Cristália (divulgação)

Polilaminina: uma descoberta que provoca, mas exige cautela

Recentemente, uma notícia científica emergiu com grande repercussão: cientistas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) trabalham com uma molécula chamada polilaminina, derivada da proteína laminina extraída da placenta humana, que demonstrou, em estudos iniciais, capacidade de restaurar movimentos em pacientes com lesão medular grave (tetraplegia/paraplegia) e em modelos animais.


É um feito admirável, que simboliza o potencial imenso da pesquisa clínica nacional. Mas para além do entusiasmo, esse caso nos convida a olhar com cuidado para os dados, para os limites metodológicos e para os passos que ainda faltam — sobretudo em regulação, estrutura de apoio, financiamento e escalabilidade.


O caso da polilaminina expõe, de maneira cristalina, o que é possível quando três elementos fundamentais conseguem se alinhar no Brasil: capacidade científica de ponta, indústria nacional com apetite para inovação e um sistema regulatório minimamente funcional para permitir a pesquisa clínica de terapias complexas. Mas esse alinhamento ainda é exceção, não regra.


Contexto científico: o que se sabe até agora

A UFRJ é uma das maiores e mais produtivas universidades da América Latina. Sua capacidade instalada para pesquisa em bioengenharia, neurociência e bioprocessos é reconhecida internacionalmente. No entanto, iniciativas como a da polilaminina são raras, não por falta de talento, mas por ausência de mecanismos contínuos de financiamento translacional. Ainda hoje, muitas descobertas morrem no “vale da morte” entre a bancada e a prateleira.


Estudos pré-clínicos e modelos animais

  • Publicações recentes (Frontiers in Veterinary Sciences, entre outras) reportam uso da polilaminina em cães paraplégicos: seis animais com paraplegia, sem sucesso após cirurgia convencional e fisioterapia, receberam a substância aplicada diretamente na medula. Em quatro casos, houve recuperação de marcha, passos independentes após meses de acompanhamento.


  • Nenhum efeito colateral grave foi reportado nos animais, e a aplicabilidade direta na medula com protocolo cirúrgico e fisioterapia intensiva parece viável nestes modelos pré‑clínicos.


Primeiros dados humanos experimentais

  • Há relatos de pacientes brasileiros que participaram de estudos iniciais com polilaminina, em protocolos acadêmicos. A quantidade de voluntários é bastante pequena (menos de 10 em muitas das versões da cobertura da mídia) e os dados são heterogêneos: alguns conseguiram recuperar movimentos mínimos (como mover dedos ou tronco), outros recuperações mais amplas, mas ainda abaixo de um padrão robusto de controle clínico.


  • Em um dos casos melhor documentados, o paciente Bruno Drummond relata recuperação gradual e significativa desde que recebeu o tratamento, embora os relatos midiáticos reconheçam que ele teve fisioterapia imediata, condições de suporte clínico e que o tratamento foi aplicado em fase aguda da lesão, o que favorece melhores resultados.


Regulação, segurança e fase atual

  • A Anvisa ainda não aprovou uso clínico generalizado nem registro da polilaminina como medicamento. As informações disponíveis indicam que está em fase de estudo clínico experimental/regulatório, com análise de segurança e eficácia pendente.


  • O fomento à pesquisa vem de institutos públicos como a FAPERJ, e há participação de laboratório nacional (Cristália) para fabricação experimental. Isso é relevante pois demonstra capacidade de produção local e interesse institucional.


Panorama regulatório e ecossistema de terapias avançadas no Brasil

A ANVISA, historicamente conservadora, tem sinalizado avanços na incorporação de marcos regulatórios para terapias avançadas, como produtos de terapia gênica, celular e tecidos. O lançamento do Guias de Boas Práticas para Produtos de Terapias Avançadas e a criação de canais de diálogo com pesquisadores e empresas são passos importantes.


Para contextualizar o que a polilaminina representa, é importante mapear onde estamos com terapias avançadas no Brasil:


  • Regulação das terapias avançadas / Produtos de Terapia Avançada (PTA): normas como RDC 214/2018, RDC 260/2018 definiram requisitos para pesquisas clínicas com produtos de terapia avançada investigacional; a RDC 505/2021 regula registros desses produtos com condições de monitoramento pós-registro.


  • Lei nº 14.874/2024: recentemente aprovada, essa lei regulamenta as pesquisas clínicas com seres humanos, harmonizando mais o Brasil com padrões internacionais. Segundo Associação Brasileira da Indústria Farmacêutica (Abifina), isso facilita os processos regulatórios para produtos inovadores.


  • Relatórios de monitoramento da Anvisa para produtos de terapias avançadas: já existe um compromisso com transparência, analisando desde 2020 os produtos aprovados, monitorando eficácia e segurança em pós-registro. Esses relatórios reforçam a necessidade de evidência de longo prazo para garantir benefício‑risco favorável.


  • Ensaios clínicos autorizados: como parte desse ecossistema regulatório, desde 2018 já foram autorizadas dezenas de pesquisas clínicas com produtos de terapias avançadas. Isso mostra que há um ambiente de regulação operando que permite inovação, embora de modo ainda lento.


Desafios robustos à frente

Com todos esses avanços percebidos, os desafios continuam muitos — e cruciais para que inovações como a polilaminina possam chegar ao paciente com segurança e escala:


  1. Validação científica rigorosa

    • É necessário avançar para ensaios controlados, randomizados, multicêntricos, com número maior de voluntários para gerar estatísticas confiáveis.


    • Controlar variáveis importantes como momento da aplicação pós-lesão (fase aguda vs crônica), dose ótima, suporte cirúrgico e de reabilitação (fisioterapia, nutrição, cuidados intensivos).


  2. Segurança a longo prazo e efeitos adversos

    • Embora até agora não tenham sido relatados efeitos adversos graves relacionados diretamente à polilaminina nos estudos iniciais, a amostra é pequena e o tempo de acompanhamento ainda limitado.


    • Monitoramento contínuo e termose de compromisso regulatórios são essenciais para capturar efeitos tardios ou em populações diversas.


  3. Escalabilidade e produção

    • Produzir um composto de alta pureza, consistente, biologicamente ativo, em escala compatível com ensaios clínicos maiores, exige laboratórios com capacidade, processos padronizados, controle de qualidade e certificações.


    • A parceria com o Cristália é promissora, mas ainda se desconhecem os custos de produção, viabilidade industrial e desafios de cadeia de suprimentos (placentas como matéria-prima, processamento, garantia de segurança biológica etc.).


  4. Regulação, norma técnica e reconhecimento

    • A legislação brasileira de terapias avançadas tem se modernizado, mas algumas normas específicas ainda estão em proposta ou em consulta, como normas técnicas para ensaios clínicos de terapias avançadas que considerem particularidades como tecidos humanos, matriz extracelular, biomateriais etc.


    • Regras de precificação e incorporação no SUS para terapias de alto custo continuam sendo desafio; a Comissão de Regulação de Mercado de Medicamentos (CMED) ainda trabalha em modelos que considerem custo, eficácia, durabilidade, impacto real e capacidade de reembolso. (ABIFINA)


  5. Financiamento e estrutura de apoio institucional

    • Financiamento de pesquisa de longo prazo: bolsas, fundos públicos como FAPERJ, FINEP e políticas estatísticas que priorizem deeptechs.


    • Apoio público-privado e indústrias nacionais com apetite de risco tecnológico são imprescindíveis.


    • Infraestrutura de pesquisa, laboratórios de GMP, redes de colaboração, capacitação de profissionais (cirurgia, neurociência, engenharia biomédica) especializados.


Por que a polilaminina é simbólica – e o que ela revela de possibilidades

O Cristália tem histórico de desenvolver ativos próprios, como anestésicos e biofármacos. É uma exceção num mercado onde a maioria dos laboratórios nacionais ainda concentra seus esforços em genéricos, similares e licenças de multinacionais. Iniciativas de desenvolvimento radical envolvem alto risco, ciclo longo e investimento intensivo, um perfil pouco compatível com a lógica financeira tradicional do setor privado brasileiro.


Mas isso está mudando. Casos como o do Biomm, Blau, Biolab e do próprio Cristália mostram que há uma nova geração de farmacêuticas nacionais que busca ir além do feijão-com-arroz da indústria. O desafio agora é ampliar esses exemplos, conectar com startups deeptechs e construir uma infraestrutura de apoio que torne esses riscos mais palatáveis.


A polilaminina não é só mais um experimento; ela encarna um modelo que combina:


  • Visão de longo prazo na ciência acadêmica (UFRJ mantém pesquisa sobre laminina há décadas);


  • Capacidade de produção local (com laboratório nacional envolvido);


  • Aplicação cirúrgica direta, com protocolo clínico claro, fisioterapia de suporte imediato, cuidado no tempo de aplicação;


  • Apoio institucional em ciência + regulação que, se robustecidos, poderão servir de modelo para outras terapias avançadas.


Esse tipo de esforço rompe com narrativas de “dependência tecnológica externa” e mostra que estamos sim aptos a descobrir, desenvolver e testar terapias regenerativas de fronteira – mesmo com os inevitáveis riscos e muitas incógnitas.


Projeções, dados de mercado e comparativos internacionais

  • O Brasil está entre os países da América Latina com ambiente regulatório mais avançado para terapias avançadas (PTAs), graças às RDCs de 2018/2021, à Lei 14.874/2024 e à atuação de redes de especialistas técnicas como a Reneta/ANVISA.


  • Segundo dados da ABIFINA, o número de ensaios clínicos autorizados com PTAs no Brasil vêm crescendo: mais de 60 pesquisas desde 2018 envolvendo produtos biológicos, células, tecidos ou engenharia tecidual.


  • Comparativamente, mercados internacionais (EUA, UE, Canadá) investem bilhões de dólares em terapias regenerativas e deeptechs em saúde; startup valuations, parcerias industriais, venture capital e M&A nesse setor têm se intensificado. Esse cenário global eleva também as expectativas para país que mantêm ciência de qualidade.


Reflexões pessoais: da experiência com COINFAR e empreender inovação no Brasil

Minha trajetória recente, e antiga, mostra que muitos dos elementos necessários para inovação disruptiva já existem no Brasil, mas o “gap sistêmico” às vezes exige decisões estratégicas difíceis:


  • No COINFAR, vimos que cooperação indústria-academia pode gerar soluções, mas também que sem políticas estáveis e visão de Estado, esses esforços perdem fôlego.


  • Empreender com base científica profunda (deeptechs) significa aceitar ciclos mais longos, risco regulatório, necessidade de diálogo com órgãos reguladores desde cedo, investimentos de capital paciente, e clara estratégia de propriedade intelectual.


A polilaminina estará no centro desse debate: ser um caso de sucesso ou ficar como promessa, depende muito mais do ecossistema do que da molécula em si.


Caminho para a translação efetiva

A descoberta da polilaminina é um dos momentos mais inspiradores da biotecnologia brasileira recente — mas sua promessa ainda está longe de virar realidade clínica generalizada. Para isso, será necessário:


  • Realizar novas fases clínicas robustas, com diferentes centros, maiores amostras, desenhos metodológicos mais rigorosos;


  • Garantia de segurança a longo prazo e vigilância regulatória constante;


  • Produção em escala industrial com qualidade controlada;


  • Estabelecer modelos de financiamento sustentável para deeptechs em saúde;


  • Ajustar normativas regulatórias e de incorporação em políticas públicas, para terapias avançadas que tendem a ter custo elevado, mas benefício social potencial muito grande.


Se tudo isso se alinhar, poderemos ter no Brasil não só uma molécula promissora, mas uma trajetória de inovação robusta, que ajuda pacientes, fortalece ciência nacional e coloca o país no mapa mundial das terapias regenerativas.


O caso da polilaminina nos oferece mais do que esperança, ele nos obriga a repensar o ambiente que queremos cultivar para que a ciência brasileira floresça. É preciso ampliar os instrumentos de fomento à pesquisa translacional, fortalecer as pontes entre universidades e empresas com capacidade produtiva real e garantir que a regulação acompanhe, sem sufocar, o avanço das tecnologias biomédicas. Projetos como esse exigem tempo, perseverança e um ecossistema que saiba identificar onde estão suas gemas raras.


No IBIS, seguimos atentos aos sinais do presente que anunciam o futuro — e comprometidos em fortalecer esse terreno fértil onde inovação e impacto social podem, de fato, caminhar juntos. Estamos comprometidos em articular esse ecossistema: apoiando cientistas dedicados, conectando-os com indústrias nacionais, fomentando políticas públicas eficazes e defendendo regulação que permita inovação sem abrir mão de segurança.


Se você atua em pesquisa biomédica, empreendedorismo em saúde ou formulação de políticas, entre em contato conosco e vamos discutir como sua jornada pode ser apenas o início de algo muito maior.


Marcio de Paula, fundador do Instituto Brasileiro de Inovação em Saúde - IBIS



por Marcio de Paula

Instituto Brasileiro de Inovação em Saúde - IBIS

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