Psilocibina e o Novo Horizonte da Ciência Psicodélica: Avanços no Brasil e no Mundo
- Alma Mater Cosméticos

- 3 de ago.
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Por décadas, a ideia de tratar doenças mentais graves com os “cogumelos mágicos” psicodélicos parecia confinada ao tabu ou a experimentos marginais. No verão de 2025, porém, ocorreu uma mudança notável nesse panorama. A Alemanha tornou-se o primeiro país da União Europeia a permitir que pacientes com depressão resistente a tratamento tenham acesso à terapia assistida por psilocibina em casos excepcionais, sob um programa de uso compassivo aprovado pelo órgão regulador de saúde. Quase ao mesmo tempo, o Parlamento da República Tcheca aprovou a legalização do uso medicinal da psilocibina, pavimentando o caminho para que pacientes recebam o composto de forma controlada em ambientes clínicos. Essas decisões históricas marcam o renascimento da medicina psicodélica no Ocidente e suas ondas de impacto já se fazem sentir até mesmo do outro lado do Atlântico, onde pesquisadores e empreendedores brasileiros também avançam nessa fronteira.
Reguladores Europeus abrem as portas para a psilocibina
A iniciativa alemã, anunciada oficialmente em julho de 2025, criou o primeiro programa de uso compassivo de psilocibina na União Europeia. Pacientes com depressão resistente a tratamentos convencionais poderão receber doses controladas de psilocibina em ambiente clínico supervisionado, mas apenas em casos excepcionais devidamente justificados. O Central Institute of Mental Health (CIMH) de Mannheim, que solicitou ao governo a liberação, celebrou a decisão como um passo “enormemente importante” que amplia as opções terapêuticas para pacientes sem alternativas, desde que sob rigoroso controle médico e ético. Dr. Gerhard Gründer, responsável pelo projeto, enfatizou que em alguns casos a psilocibina “pode ser uma opção médica e eticamente justificável, se conduzida em condições estritamente controladas”. Em suma, trata-se de um marco regulatório sem precedentes na Europa, permitindo a certos pacientes acesso a uma terapia ainda experimental – algo impensável poucos anos atrás.
Na República Tcheca, por sua vez, a câmara baixa do Parlamento aprovou em junho de 2025 uma ampla reforma das leis de drogas que incluiu a legalização do uso terapêutico da psilocibina em contextos psiquiátricos. O texto legal permite que médicos prescrevam e farmácias preparem medicamentos sob medida à base de psilocibina para fins de tratamento, seguindo regulamentação específica. Com a aprovação final no Senado e a sanção presidencial consideradas prováveis (não há expectativa de oposição significativa atualmente), o país caminha para se tornar um dos pioneiros mundiais na oferta de psicodélicos medicinais de forma legal, ao lado de países como Suíça, Canadá e Austrália, que já lideram esse campo. Sinal dos tempos, pesquisas indicam que cerca de 68% da população tcheca apoia o uso médico de psicodélicos, reflexo de uma mudança cultural em torno dessas substâncias. Vale notar que a psilocibina não foi a única beneficiada na reforma: o pacote aprovado na Tcheca também liberou o cultivo doméstico de cannabis (até três plantas por pessoa) e amenizou penalidades para posse de pequenas quantidades – indicando uma guinada mais pragmática na política de drogas do país, focada em saúde pública em vez de punição.
Em ambos os casos – Alemanha e República Tcheca – as decisões representaram um rompimento com décadas de proibição rígida herdada desde os anos 1970. Pela primeira vez na história recente, governos europeus não apenas admitem o potencial terapêutico de um psicodélico clássico, mas criam vias legais para seu uso controlado. “Se confirmado pelo Senado, [a medida] colocará a Tchéquia ao lado de países como Suíça, Canadá e Austrália na vanguarda do uso médico de psicodélicos”, afirmou em nota a Psychedelic Access and Research European Alliance (PAREA), comemorando o avanço tcheco. A percepção pública também evoluiu: o fato de uma maioria dos tchecos apoiar a terapia com substâncias antes associadas apenas ao contracultural indica uma normalização crescente do tema na sociedade.
Tendências internacionais em torno da psilocibina terapêutica
Os movimentos na República Tcheca e Alemanha fazem parte de uma tendência global de flexibilização controlada do acesso a psicodélicos para fins médicos, especialmente diante dos desafios da saúde mental. Alguns destaques internacionais e dados recentes:
Suíça: Desde 2014, o governo suíço permite autorizações excepcionais para uso terapêutico de substâncias como psilocibina, LSD e MDMA em casos individuais. Embora esses medicamentos não tenham registro oficial, médicos podem solicitar permissão caso a caso. O uso vem crescendo gradualmente – em 2024 foram concedidas cerca de 700 autorizações, das quais a psilocibina representou 322 (indicando demanda significativa).
Canadá: O país reativou em 2021/2022 um mecanismo de acesso especial a psicodélicos, permitindo que profissionais de saúde requisitem psilocibina para pacientes terminais ou com condições graves. Contudo, processos burocráticos e falta de infraestrutura limitaram o alcance: dados do órgão federal mostram que poucos pedidos têm sido aprovados, com queda nas autorizações entre 2022 e 2024. Isso evidencia os desafios práticos de implementar essas exceções mesmo quando a via legal existe.
Austrália e Nova Zelândia: A Austrália tomou uma decisão inédita ao reclassificar, em 2023, a psilocibina e a MDMA como terapias autorizadas para certos transtornos. Desde julho de 2023, psiquiatras certificados na Austrália podem prescrever psilocibina para depressão resistente e MDMA para estresse pós-traumático, dentro de protocolos estritos. O acesso ainda é modesto. Menos de 100 pacientes receberam essas terapias nos primeiros 18 meses do programa australiano, porém em expansão gradual. Na Nova Zelândia, regulamentações similares começaram a emergir: até recentemente apenas um médico estava autorizado a prescrever psilocibina, mas novas diretrizes foram publicadas para ampliar o número de profissionais habilitados. Esses países mostram que, embora incipientes, os programas clínicos com psicodélicos podem ser implementados sob supervisão e com baixo volume inicial, ganhando escala conforme cresce a capacitação médica e evidência de eficácia.
Estados Unidos: Nos EUA o cenário é dividido entre iniciativas estaduais e posição federal. Em nível federal, não há programa compassivo formal para psilocibina. O FDA até hoje só autorizou uma única iniciativa de uso expandido em psicodélicos (um programa pequeno com MDMA em 2019). Em contraste, alguns estados avançam por conta própria: Oregon e Colorado foram os primeiros a legalizar o acesso controlado à psilocibina para adultos (via centros de serviço/licenciamento, aprovados por referendo popular). Mais recentemente, em 2025 o estado do Novo México aprovou a primeira lei estadual criando um programa médico de psilocibina, com previsão de clínicas autorizadas para tratar condições como depressão resistente, PTSD e cuidados paliativos. Esses movimentos estaduais, como Oregon e Colorado via voto popular, Novo México via legislativo, demonstram o interesse regional em disponibilizar terapias psicodélicas mesmo antes de aval federal, embora a implementação plena desses programas deva ocorrer nos próximos anos. A experiência norte-americana indica tanto o potencial terapêutico percebido quanto a cautela regulatória: a liberação acontece em esferas locais, enquanto autoridades nacionais aguardam resultados de pesquisas e processos de aprovação tradicionais.
Big Pharma de olho nos psicodélicos
Não são apenas governos que estão revisitando os psicodélicos. A indústria farmacêutica também vem se movimentando. Em julho de 2025, surgiram notícias de que a gigante AbbVie estaria em negociações para adquirir a biotech americana Gilgamesh Pharmaceuticals por cerca de US$ 1 bilhão. A AbbVie já havia firmado uma colaboração com a startup no ano anterior, pagando US$ 65 milhões antecipados e garantindo opções que poderiam chegar a quase $2 bilhões, como parte de um acordo para codesenvolver novas terapias psiquiátricas.
Esse investimento inicial se justificou pelos resultados promissores da Gilgamesh, que relatou 94% de taxa de remissão dos sintomas em um ensaio clínico de fase 2 com seu fármaco psicodélico para depressão maior. Caso o negócio se concretize, será um poderoso endosso ao campo: investidores celebraram o rumor como um “grande aval” e evidência de que a Big Pharma enfim leva os psicodélicos a sério. De fato, conforme apontou a análise da Bloomberg, o interesse de uma das maiores farmacêuticas do mundo destaca o “crescente apetite por aquisições” no setor.
A estratégia da AbbVie faz parte de um movimento mais amplo de renovação de portfólio em psiquiatria. Nos últimos anos, a empresa já havia realizado acordos de peso na área, como por exemplo, pagou US$ 8,7 bilhões pela aquisição da Cerevel Therapeutics, startup focada em esquizofrenia, e fechou colaborações para reforçar sua linha de tratamentos em saúde mental.
Outras gigantes, como a Johnson & Johnson, também colheram frutos financeiros ao explorar esse novo paradigma: seu spray nasal antidepressivo Spravato (escetamina, variante da ketamina) tornou-se um produto comercial de sucesso, com vendas anuais em torno de US$ 1,5 bilhão. Esses movimentos indicam que os psicodélicos estão deixando de ser um nicho alternativo para se tornar um eixo central de inovação na neurociência farmacêutica.
Essa “corrida do ouro” psicodélica não se restringe aos grandes laboratórios. Estimativas indicam que a psicoterapia assistida por psicodélicos poderá se converter em um mercado global da ordem de US$ 100 bilhões por ano. Diversas startups especializadas emergiram nos últimos anos e travaram uma corrida por patentes de novas moléculas, formulações e protocolos terapêuticos. O frenesi inovador lembra, em parte, o boom da cannabis medicinal de meia década atrás mas desta vez focado em substâncias como psilocibina, MDMA, LSD e derivados com potencial de reescrever o tratamento de transtornos psiquiátricos.
A evolução recente das ciências psicodélicas
O ressurgimento atual das ciências psicodélicas coroa um hiato de décadas. Houve um período de efervescência nas décadas de 1950 e 60, quando substâncias como LSD e psilocibina foram intensivamente estudadas em contextos terapêuticos. Entretanto, a partir de 1970, com o avanço do movimento da contracultura e preocupações governamentais, esses estudos foram praticamente encerrados e o uso recreativo dos psicodélicos proibido quase no mundo todo. Iniciou-se então um longo inverno científico: por quase quarenta anos, as pesquisas clínicas com psicodélicos ficaram à margem, restritas a pequenos grupos e experimentos isolados.
Por volta dos anos 2000, esse cenário começou a mudar. Pesquisadores em países como EUA, Reino Unido e Brasil retomaram estudos básicos e clínicos com substâncias como a própria psilocibina, abrindo caminho para uma “renascença psicodélica”. A virada de chave veio em 2020, quando uma série de acontecimentos reacendeu de vez o campo. Entre os marcos recentes, destacam-se:
2020 (EUA) – Em novembro, o estado de Oregon tornou-se o primeiro nos EUA a legalizar o uso terapêutico da psilocibina para adultos. A medida, aprovada via referendo, entrou em vigor em 2021 e permite que maiores de 21 anos acessem psilocibina em clínicas licenciadas para tratar condições como depressão, ansiedade e transtorno de estresse pós-traumático (TEPT).
2021 (EUA) – Em reconhecimento ao potencial terapêutico, o FDA (agência reguladora dos EUA) concedeu Designação de Terapia Inovadora (Breakthrough Therapy) à psilocibina para tratamento do TEPT. Essa designação acelera o processo de desenvolvimento e revisão de novos fármacos, sinalizando que a FDA enxerga na psilocibina um tratamento promissor para o transtorno pós-trauma.
2022 (Global) – Um estudo publicado na revista Nature Medicine evidenciou que a psilocibina pode aumentar as conexões neurais em pacientes com depressão. Esses resultados neurobiológicos ajudaram a explicar os efeitos antidepressivos observados e deram embasamento científico adicional ao uso clínico da substância.
2023 (Austrália) – A agência reguladora australiana surpreendeu ao anunciar, em meados de 2023, que o país seria o primeiro a autorizar formalmente psiquiatras a prescrever psilocibina e MDMA para certos transtornos. A partir de julho de 2023, a Austrália liberou o uso medicinal de psilocibina (para depressão resistente) e MDMA (para TEPT) por médicos credenciados, marcando a primeira vez que psicodélicos passam a integrar oficialmente o arsenal terapêutico de um país inteiro.
Esses acontecimentos, somados aos avanços regulatórios recentes na Europa, alimentam um entusiasmo palpável. A produção acadêmica reflete esse movimento: somente nos últimos cinco anos, cerca de 3 mil artigos científicos sobre psicodélicos foram publicados globalmente. Diversos centros de pesquisa e investimento estão se dedicando ao tema, e as projeções de mercado indicam um crescimento acelerado nos próximos anos.
Segundo um relatório da The Business Research Company, o mercado global de medicamentos psicodélicos cresceu em torno de 15% entre 2023 e 2024, saltando de US$ 4,88 bilhões em 2023 para US$ 5,62 bilhões em 2024. Nos anos seguintes a expansão deve se manter rápida, podendo atingir US$ 10,2 bilhões em 2028. Os fatores por trás desse otimismo incluem o avanço regulatório, a conscientização pública sobre saúde mental e uma aceitação maior desse tipo de tratamento tanto por pacientes quanto pela classe médica. Em outras palavras, há uma conjunção favorável de ciência, política e mercado impulsionando as ciências psicodélicas para o mainstream da medicina.
O Brasil na vanguarda? Pesquisa e inovação psicodélica no país
Enquanto Europa, América do Norte e Oceania desbravam novas políticas, o Brasil constrói sua própria narrativa na revolução psicodélica, embora ainda enfrente desafios regulatórios consideráveis. No momento, substâncias como psilocibina, LSD e MDMA permanecem ilegais para uso clínico ou pessoal no país, exceto em protocolos de pesquisa científica aprovados pelas autoridades competentes.
Em 2020, a ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) aprovou o uso da escetamina (enantiômero da ketamina) como tratamento para depressão resistente, mas restrito a ambiente hospitalar e sob supervisão especializada. Fora isso, apenas a ibogaína opera numa zona cinzenta: não é registrada como medicamento, porém a ANVISA permite sua importação caso a caso para tratamentos de dependência química e depressão em clínicas particulares.
Já a psilocibina continua proibida fora de estudos clínicos formalmente autorizados pela ANVISA e por comitês de ética; na prática, somente alguns centros de pesquisa credenciados podem administrar a substância de forma legal em voluntários, dentro de ensaios controlados. Em suma, do ponto de vista regulatório, o Brasil avança com cautela: foca-se em pesquisa e libera por enquanto apenas a ketamina (já um anestésico conhecido) como opção terapêutica inovadora, enquanto observa a evolução internacional antes de rever suas normas sobre os psicodélicos clássicos.
Apesar dessas barreiras, a comunidade científica brasileira tem se destacado internacionalmente no campo. Graças em parte à permissão do uso religioso da ayahuasca (bebida que contém o psicodélico DMT) desde os anos 1980, o Brasil emergiu como um dos líderes em pesquisa, ocupando o terceiro lugar mundial em número de publicações científicas de alto impacto sobre psicodélicos, atrás apenas de Estados Unidos e Reino Unido.
Nomes como o neurocientista Sidarta Ribeiro e o psiquiatra Dráulio de Araújo, ambos do Instituto do Cérebro (ICe) da UFRN, estão na linha de frente desse esforço. Em conjunto com colaboradores de outras instituições, como o Dr. Stevens Rehen (UFRJ e Instituto D’Or) e o Dr. Luís Fernando Tófoli (UNICAMP), eles conduziram estudos pioneiros, incluindo investigações básicas com LSD e outras substâncias, bem como ensaios clínicos com ayahuasca para depressão resistente (publicados na Psychological Medicine em 2019) e com DMT.
Recentemente, o Centro Avançado de Medicina Psicodélica (CAMP) na UFRN publicou as primeiras evidências clínicas do efeito antidepressivo e antissuicida da DMT inalável. Nesse estudo inédito, 27 voluntários saudáveis receberam doses controladas de DMT por via inalatória, demonstrando segurança e efeitos psíquicos intensos porém de curta duração (10–20 minutos), um perfil muito distinto do da psilocibina (cujo efeito pode durar 6 horas). Em seguida, uma fase piloto com pacientes com depressão mostrou reduções rápidas e sustentadas nos sintomas depressivos e na ideação suicida após sessões com DMT.
Os pesquisadores destacam que a experiência breve e administrada de forma não invasiva pode ser uma alternativa viável e realista para o SUS brasileiro, por requerer menos tempo de terapia e menos recursos por paciente, mantendo eficácia notável. Ou seja, o Brasil já contribui com inovação original: explorar uma molécula de ação ultrarrápida como a DMT para contornar obstáculos práticos das terapias psicodélicas clássicas, que, embora eficazes, demandam muitas horas de acompanhamento e infraestrutura.
Além dos grandes centros acadêmicos, instituições independentes e startups brasileiras atuam para trazer a ciência psicodélica do laboratório à sociedade. O Instituto Phaneros, fundado em 2011 pelo neurocientista Eduardo Schenberg, é pioneiro na pesquisa e educação sobre psicodélicos no país (inclusive o nome Phaneros alude à manifestação do espírito). Essa organização sem fins lucrativos já participou, por exemplo, de um estudo piloto vinculado à pesquisa global da MAPS sobre terapia assistida por MDMA para TEPT.
Atualmente, o Phaneros foca em formação de profissionais de saúde para uso dessas terapias emergentes: em parceria com a empresa norte-americana Fluence, passou a oferecer conteúdo de treinamento em psicoterapia psicodélica traduzido para o português do Brasil via plataforma online. Segundo Schenberg, iniciativas assim visam capacitar médicos e terapeutas para manejar tratamentos já disponíveis, como a própria cetamina, aprovada pela Anvisa, com mais segurança e eficácia. Ao difundir conhecimento de ponta e construir uma comunidade de profissionais, o Phaneros cumpre um papel crucial de preparação do terreno caso substâncias como psilocibina e MDMA venham a ser autorizadas no futuro próximo.
Outra iniciativa de destaque é a Scirama Psychedelic Science, lançada em 2021 como a primeira startup brasileira focada exclusivamente em inovação psicodélica. Idealizada pelo empreendedor Marcel Grecco (criador da aceleradora de cannabis The Green Hub), a Scirama nasceu com o objetivo de financiar e estruturar o desenvolvimento de novos produtos e terapias derivados de psicodélicos. Para isso, montou um comitê científico liderado por pesos-pesados da área, incluindo Stevens Rehen e Sidarta Ribeiro, e captou investimento inicial de cerca de R$ 1,5 milhão para impulsionar pesquisas nacionais.
A Scirama pretende lançar editais para selecionar projetos promissores, abarcando desde protocolos de psicoterapia com psicodélicos clássicos (LSD, psilocibina, ayahuasca) até técnicas de cultivo de cogumelos Psilocybe e desenvolvimento de análogos não alucinógenos com potencial terapêutico. A ideia é aproveitar propriedades já conhecidas dessas substâncias, como a capacidade de estimular novas conexões neurais (neuroplasticidade) e a ação anti-inflamatória, para tratar transtornos mentais e até doenças neurodegenerativas no futuro.
No exterior, investiga-se uso de psicodélicos até para condições como AVC, anorexia e enxaqueca; aqui, entre os focos da Scirama estão também protocolos para tratar dependência química, retomando linhas de pesquisa do passado (como o uso de LSD para alcoolismo nos anos 50/60). Em suma, a Scirama busca ser um catalisador do “renascimento psicodélico” no Brasil, conectando investidores, cientistas e sociedade para transformar descobertas em soluções de saúde.
Por fim, cabe citar a BioCase Brasil, empresa que atua na confluência entre cannabis medicinal e psicodélicos. Inicialmente focada em produtos de CBD e cannabis terapêutica, a BioCase expandiu seu escopo para incluir os enteógenos (psicodélicos de uso médico) em seu portfólio. Em 2022, a empresa firmou uma parceria público-privada inédita com o laboratório federal Certbio/UFCG e obteve autorização da Anvisa para testar a psilocibina extraída de cogumelos cultivados no Brasil.
Esse projeto “Psilocibina” permite coletar fungos Psilocybe em solo nacional, extrair e purificar a psilocibina e, em seguida, realizar testes in vitro e estudos pré-clínicos em animais, avaliando potência, estabilidade, ausência de contaminantes, etc., como passo preparatório para futuros ensaios clínicos. Foi a primeira parceria público-privada para desenvolvimento de um produto psicodélico no país, algo celebrado pelos envolvidos como o início de um ciclo virtuoso que insere o Brasil na onda global de busca por novos tratamentos baseados em substâncias antes controversas.
Desde então, a BioCase (em conjunto com seu braço educacional, o Instituto Alma Viva) tem avançado em várias frentes. Lançou uma pós-graduação lato sensu em psicoterapia assistida por psicodélicos para capacitar profissionais de saúde, replicando no campo dos psicodélicos a estratégia de educação que foi crucial para a expansão da cannabis medicinal no país.
E no final de 2024 veio um anúncio importante: a BioCase/Alma Viva recebeu autorização para importar 18 kg de cogumelos Psilocybe visando produzir lotes-piloto de um medicamento nacional de psilocibina. Essa importação excepcional, aprovada pela Anvisa, permitiria à empresa fabricar o IFA (ingrediente farmacêutico ativo) de psilocibina e conduzir estudos completos de qualidade, segurança e eficácia, incluindo um ensaio clínico já autorizado pelo sistema de ética (CEP/Conep) e registrado na plataforma ReBEC.
Os ensaios serão realizados no centro de pesquisas da empresa em São Paulo, envolvendo inclusive alunos da pós-graduação em psicodélicos do Instituto Alma Viva. Trata-se, portanto, de um esforço integrado de pesquisa + formação, e que pode resultar no primeiro medicamento psicodélico desenvolvido inteiramente no Brasil. A notícia foi recebida com entusiasmo, pois representa “18 kg de esperança”, como divulgou o Instituto Alma Viva, para milhares de pacientes que hoje sofrem com depressão resistente e poderão, quem sabe em poucos anos, contar com uma nova alternativa de tratamento, eficaz em dose única semestral e com mínimos efeitos colaterais.
Perspectivas e desafios
Diante de todo esse panorama, fica claro que estamos testemunhando uma mudança de paradigma na saúde mental. O crescente corpo de evidências científicas e as vitórias regulatórias recentes, da Alemanha à Austrália, de São Paulo a Praga, apontam para a integração dos psicodélicos na medicina convencional num futuro próximo.
Ainda assim, muitos desafios persistem. Regulamentar a utilização segura dessas substâncias exigirá capacitação profissional ampla (domínio de conceitos como set and setting, triagem rigorosa de pacientes) e políticas públicas bem embasadas. No Brasil, em particular, será crucial o diálogo contínuo entre cientistas, agências reguladoras e o sistema de saúde para que os avanços do laboratório se traduzam em terapias acessíveis à população. Há também o cuidado de equilibrar o entusiasmo de mercado com a responsabilidade ética: uma corrida comercial desordenada ou promessas exageradas poderiam comprometer a confiança pública, caso não sejam observados o rigor científico e a segurança em cada etapa do desenvolvimento dessas terapias.
De minha perspectiva pessoal, um realista otimista, penso ser possível vislumbrar um futuro em que substâncias outrora marginalizadas se tornem ferramentas terapêuticas validadas, oferecendo alívio a pacientes que não respondiam aos tratamentos convencionais. A jornada de reabilitação dessas moléculas, do ostracismo ao reconhecimento, do ritual ancestral à clínica moderna, configura um dos movimentos mais intrigantes da medicina contemporânea.
E o Brasil, ao que tudo indica, está disposto a não ficar para trás nessa história, contribuindo com criatividade, pesquisa de qualidade e um olhar singular que une tradição e inovação nas ciências psicodélicas. Temos diante de nós um campo em plena ebulição, científico, industrial e cultural, e cada novo passo, seja uma aprovação regulatória na Europa ou um estudo pioneiro em Natal, reforça a sensação de estarmos adentrando um novo horizonte para a saúde mental.
Com o avanço da ciência psicodélica no mundo e os sinais claros de transformação no Brasil, o momento pede articulação estratégica, responsabilidade técnica e diálogo entre inovação, políticas públicas e regulação. No IBIS, acompanhamos de perto esse ecossistema emergente e estamos à disposição para apoiar pesquisadores, startups, formuladores de políticas e investidores na construção de pontes seguras entre descobertas científicas e aplicações reais em saúde mental. Se você atua nesse campo e quer se conectar a uma rede qualificada de inovação em saúde, fale com o IBIS.
Referências:
Gabriela Galvin. “Germany to allow some depressed patients to try psilocybin amid psychedelic medicine boom.” Euronews, 31 de julho de 2025.
Rowan Dunne. “Home cannabis cultivation and psilocybin therapy to be legal in Czechia next year.” Mugglehead Magazine, 11 de junho de 2025.
Nick Paul Taylor. “AbbVie crowns Gilgamesh its next M&A target with $1B buyout talks: report.” Fierce Biotech, 31 de julho de 2025.
Psychedelic Alpha. “Psychedelic Bulletin #205: AbbVie Eyes Gilgamesh…” 1 de agosto de 2025.
Marcel Leite. “Nasce a Scirama, primeira empresa de inovação psicodélica do Brasil.” Folha de S.Paulo – Blog Virada Psicodélica, 18 de abril de 2021.
Carlos Minuano. “Brasil testará pela 1ª vez cogumelos psicodélicos para criar medicamento.” UOL VivaBem, 27 de maio de 2022.
Lara Goldstein. “Avanza la terapia con psicodélicos en Brasil: ¿Qué implica la asociación de Fluence y Phaneros?” El Planteo, 28 de julho de 2023.
Green Rock. “Psicodélicos em 2024: estudos, expectativas e regulamentações.” Blog Greenrock.vc, 2024.
Instituto Alma Viva. “A melhor notícia do ano para a Biocase Brasil… nova esperança com tratamento inovador para depressão resistente.” 5 de novembro de 2024.
Falchi et al. “Inhaled N,N-DMT for the treatment of depression: a phase I/II clinical trial.” (pré-print, CAMP/UFRN) – resumo divulgado em Ciência Psicodélica, 2023.

por Marcio de Paula
Instituto Brasileiro de Inovação em Saúde - IBIS




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