Inovação Farmacêutica Global até 2029: Tendências, Desafios e o Lugar do Brasil
- Alma Mater Cosméticos

- 16 de jul.
- 30 min de leitura
A indústria farmacêutica e de biotecnologia global atravessa um período de crescimento acelerado em uso e gastos com medicamentos, impulsionado por inovações terapêuticas e maior acesso em diversas regiões. Projeções recentes do relatório “The Global Use of Medicines: Outlook through 2029 – Increasing Access, Use, and Spending”, do IQVIA Institute, estimam que o gasto mundial com medicamentos alcance em torno de US$ 2,4 trilhões até 2029.
Terapias inovadoras lançadas na última década, de imunoterapias contra o câncer a drogas revolucionárias para diabetes e obesidade, vêm transformando o cuidado de pacientes em escala global. No entanto, persistem disparidades significativas entre mercados desenvolvidos e emergentes no acesso a essas inovações.
Diferenças em regulamentação, velocidade de lançamentos e capacidade de adoção de novas terapias resultam em realidades distintas: enquanto alguns países rapidamente incorporam os últimos avanços, outros enfrentam gargalos que atrasam a chegada de medicamentos de ponta à população.
Neste artigo, analisamos as principais tendências globais até 2029 em uso de medicamentos e inovação farmacêutica, destacando o papel crucial das novas terapias biotecnológicas. Examinamos curiosidades e perspectivas de mercado apresentadas pelo relatório do IQVIA, como o avanço vertiginoso de tratamentos biológicos, a expansão dos biossimilares, o fenômeno dos agonistas GLP-1 para diabetes e obesidade, e a evolução dos tratamentos oncológicos.
Em seguida, comparamos o cenário brasileiro a práticas internacionais, evidenciando diferenças de acesso e regulamentação. O Brasil, maior mercado farmacêutico da América Latina, vive o desafio de equilibrar crescimento e inovação com políticas de acesso equitativo e sustentabilidade financeira. Veremos como gargalos regulatórios, econômicos e estruturais impactam a incorporação de novos medicamentos no país, e como iniciativas para superá-los começam a ganhar forma.
O objetivo é oferecer uma visão analítica, que conecte dados globais a fatos atuais do Brasil. Assim, atores do ecossistema de inovação em saúde, como startups, academia, governo, órgãos de fomento, investidores e corporações, poderão compreender tanto o panorama mundial quanto as oportunidades e obstáculos no contexto nacional. Por fim, discutiremos caminhos para fomentar a inovação em saúde no Brasil.
Panorama da Inovação Farmacêutica Global: Crescimento do Uso de Medicamentos e Inovações até 2029
As projeções do IQVIA Institute indicam que o uso global de medicamentos continuará em trajetória ascendente, embora em ritmo moderado. Após um crescimento de 14% nos últimos cinco anos, o volume de medicamentos utilizados mundialmente deve aumentar cerca de 4% até 2029, o que representa 154 bilhões de doses definidas por dia (DDD) adicionais. Esse crescimento é impulsionado principalmente por maior acesso a medicamentos em diversas regiões do mundo, notadamente em mercados emergentes da Ásia e da América Latina, enquanto em regiões desenvolvidas o consumo per capita já é mais estável.
Em termos de gastos, o mundo verá uma elevação significativa impulsionada pelas inovações. Além da cifra trilionária já mencionada, vale notar a mudança no perfil dos gastos por tipo de produto e por área terapêutica. A tendência global é de deslocamento para terapias mais complexas e de alto valor, à medida que medicamentos inovadores e biotecnológicos ganham espaço em relação a tratamentos tradicionais.
Países mais ricos direcionam uma parcela maior de seus gastos para medicamentos originadores (de referência), enquanto países de renda menor dependem mais de genéricos e versões não-originadoras. Essa diferença reflete tanto poder econômico quanto políticas de saúde: nações com maiores recursos conseguem investir em terapias de última geração assim que lançadas, ao passo que mercados emergentes frequentemente priorizam alternativas de menor custo.
Um dado impressionante do relatório é que mais de 1.000 novos medicamentos (novas substâncias ativas, NAS) foram lançados globalmente nos últimos 20 anos, sendo 394 apenas nos últimos 5 anos. Trata-se de uma onda de inovação sem precedentes, liderada por áreas como oncologia, neurologia e doenças infecciosas, cada uma com mais de 100 novas substâncias desde 2005.
A oncologia, em particular, teve uma aceleração marcante: na segunda metade da década de 2010, lançou-se em média 29 novos medicamentos oncológicos por ano no mundo, comparado a apenas 8 por ano no quinquênio 2005-2009. Esses avanços estão ressignificando o tratamento de múltiplas doenças, dos cânceres aos distúrbios autoimunes, melhorando a sobrevida e a qualidade de vida de milhões de pacientes.
Entretanto, o relatório ressalta que o acesso a essas novidades é altamente desigual. As diferenças regionais aparecem de forma pronunciada: do total de 394 novas substâncias lançadas globalmente entre 2020 e 2024, 205 foram lançadas nos EUA, 164 na Europa (EU + Reino Unido) e 169 no Japão. A China lançou 209 – porém cerca de 40% desses lançamentos chineses ficaram restritos ao próprio mercado interno e não chegaram a outros países. Ou seja, parte da inovação hoje é glocal – global em número, mas local em disponibilidade.
Ainda, enquanto os EUA permanecem o principal mercado de estreia da maioria dos medicamentos (geralmente o primeiro país onde a nova terapia é disponibilizada), muitos países só vão aprovar e introduzir esses tratamentos anos depois, gerando hiatos consideráveis no acesso global.
Esse contexto traz à tona debates cruciais de política de saúde e comércio internacional, como aponta o IQVIA Institute. A preocupação com diferenças de acesso e precificação entre países cresceu nos últimos anos, juntamente com propostas de reformulação dos mercados globais e de controle de preços de medicamentos, notadamente nos EUA e Europa, para equilibrar inovação e sustentabilidade.
Para todos os atores envolvidos (indústria, governos, pagadores e pacientes), o desafio dos próximos anos será assegurar que o valor e os benefícios das novas terapias alcancem populações amplas, sem comprometer a viabilidade econômica dos sistemas de saúde.
Importância da Inovação Farmacêutica e Biotecnológica
A inovação em saúde não é um fim em si, mas um meio de salvar vidas, estender a sobrevida e melhorar a qualidade de vida. Os últimos anos nos deram exemplos notáveis desse poder transformador: terapias gênicas que curam doenças raras antes incuráveis, imunoterápicos que “ensinam” o sistema imunológico a combater tumores, e medicamentos como os agonistas GLP-1, originalmente desenvolvidos para diabetes, que se revelaram revolucionários no tratamento da obesidade. Essas inovações costumam vir acompanhadas de custos elevados e requerem sistemas de saúde preparados para integrá-las – mas seus impactos positivos são inegáveis em termos de resultados clínicos.
No campo farmacêutico, grande parte das inovações recentes tem sido de natureza biológica. Medicamentos biológicos, produzidos a partir de células vivas ou por bioengenharia, vão de anticorpos monoclonais a hormônios e vacinas de nova geração.
Nos últimos 5 anos, 42% dos novos medicamentos lançados globalmente foram biológicos. Em contraste, na China (que despontou como um grande polo farmacêutico), essa fatia foi menor, cerca de 33%, indicando que a inovação chinesa recente incluiu proporcionalmente mais moléculas sintéticas tradicionais. De todo modo, a era dos biológicos já é realidade: esses produtos ampliaram as opções terapêuticas para doenças autoimunes, câncer, doenças genéticas e muito mais.
Junto com os biológicos, surgiram os medicamentos biossimilares, que são cópias de biológicos de referência após a expiração da patente. Assim como os genéricos fizeram com os sintéticos, os biossimilares trazem concorrência e potencial redução de preços para tratamentos de alto custo.
Países europeus adotaram políticas proativas para estimular biossimilares e colheram os frutos em acesso e economia. No mundo todo, a adoção de biossimilares já gerou economias bilionárias e, segundo o IQVIA, vai moderar o crescimento do gasto em áreas como imunologia nos próximos anos, à medida que principais medicamentos biotecnológicos para artrite, doenças inflamatórias e outros recebem concorrentes biossimilares.
No Brasil, biossimilares estão regulamentados desde 2012 e representam uma promessa de ampliar o acesso a tratamentos complexos a custos menores. Porém, apesar de avanços regulatórios, a expansão desses produtos ainda enfrenta desafios de implementação no país. Entre os gargalos estão a desconfiança inicial de parte da classe médica, a necessidade de educação sobre a eficácia e segurança dos biossimilares, além de questões comerciais (por exemplo, acordos de exclusividade e pouca concorrência em certos mercados).
Em 2024, a ANVISA atualizou normas para registro de biossimilares (RDC 875/2024) com objetivo de simplificar e agilizar o processo, o que pode impulsionar novas aprovações nos próximos anos. A tendência, seguindo os passos da Europa, é que os biossimilares ganhem espaço gradativamente no Brasil, especialmente em áreas como oncologia e autoimunes, reduzindo o custo por tratamento e permitindo que mais pacientes iniciem terapias antes inacessíveis.
Outra área de inovação farmacológica em destaque são os agonistas de GLP-1 (peptídeo semelhante ao glucagon tipo 1). Esses medicamentos, originalmente indicados para diabetes tipo 2, provaram-se altamente eficazes no controle de peso, levando à aprovação de indicações para obesidade. O relatório da IQVIA aponta que essa classe teve adoção rápida tanto no tratamento do diabetes quanto da obesidade, predominantemente nos EUA e outros mercados desenvolvidos. Nos últimos 18 meses, houve um crescimento dramático no uso global, impulsionado especialmente pelo uso para emagrecimento.
Em 2021, o FDA aprovou a semaglutida injetável (Wegovy) para obesidade; em 2023, outro agonista (tirzepatida) obteve aval nos EUA com o nome de Zepbound. Essas aprovações funcionaram como gatilho para uma demanda exponencial. De acordo com a IQVIA, o volume de medicamentos GLP-1 prescritos para obesidade praticamente explodiu a partir dessas datas.
Hoje, vemos uma verdadeira “corrida do ouro” farmacêutica pela obesidade: os agonistas GLP-1 estão entre os produtos mais comentados e desejados globalmente. Em 2024, as vendas desses medicamentos (somando usos em diabetes e obesidade) alcançaram US$ 110 bilhões e devem ultrapassar US$ 150 bilhões até 2029.
Projeta-se que o segmento de tratamento da obesidade ultrapasse US$ 75 bilhões em 2029, crescendo a uma taxa impressionante de ~25% ao ano, figurando entre as áreas terapêuticas de maior expansão porcentual. Isso tornaria a obesidade um dos 10 maiores mercados terapêuticos globais, aproximando-se em gastos de áreas tradicionais como doenças infecciosas ou respiratórias. Vale notar que essa categoria sequer existia há poucos anos no mercado farmacêutico, um exemplo claro de inovação criando uma nova demanda médica e de mercado.
No ecossistema de saúde, essas inovações trazem benefícios, mas também exigem adaptações. Startups e empresas de biotecnologia, frequentemente em parceria com centros acadêmicos, têm sido protagonistas no desenvolvimento de novas plataformas (como terapias gênicas e vacinas de mRNA). Governos e pagadores, por sua vez, buscam equilibrar o estímulo à inovação (por meio de proteção patentária, aprovação acelerada, incentivos fiscais) com políticas de acesso (controle de preços, negociação de compras em volume, programas de subsídio). E a sociedade como um todo é chamada a discutir temas como custo-benefício de medicamentos de altíssimo preço, priorização de recursos e até onde sistemas públicos devem investir para incorporar avanços.
Em suma, a inovação farmacêutica e biotecnológica até 2029 promete continuar aumentando a oferta de terapias transformadoras, enquanto desafia os sistemas de saúde a reduzir os intervalos entre a descoberta científica e o benefício público efetivo.
Diferenças de Acesso e Lançamentos: Brasil vs. Mercados Globais
Embora o Brasil esteja entre os 10 maiores mercados farmacêuticos do mundo, o país ainda não desfruta plenamente de toda a inovação disponível globalmente. O relatório da IQVIA ilumina bem essa lacuna. Entre os medicamentos inéditos lançados globalmente na última década (2013–2022), o Brasil aprovou apenas 227 de um total de 593 – isso equivale a cerca de 38% das novas substâncias ativas disponíveis no mundo.
É um dos melhores desempenhos entre as nações de renda média. Mesmo assim, significa que quase dois terços das inovações farmacêuticas recentes não chegaram oficialmente ao mercado brasileiro. Em países de renda baixa ou média-baixa a situação é ainda mais dramática: cinco dos 14 países emergentes estudados aprovaram menos de 20 novos medicamentos em dez anos, ou seja, menos de 3% do total global. Em resumo, há uma clara divisão internacional no acesso à inovação e o Brasil, apesar de melhor posicionado que muitos vizinhos, ainda fica atrás dos países desenvolvidos.
Vários fatores explicam essa diferença. Um dos principais são os gargalos regulatórios e de mercado que atrasam (ou desencorajam) lançamentos no Brasil. Historicamente, sempre houve algum descompasso temporal: um remédio aprovado nos EUA ou Europa pode levar anos para ser registrado e comercializado em terras brasileiras. Um estudo da Federação Latino-Americana da Indústria Farmacêutica (FIFARMA) quantificou essa espera para medicamentos oncológicos e de doenças raras: pacientes latino-americanos aguardam em média de 1,9 a 4,5 anos desde a aprovação pelo FDA (agência americana) até conseguir acesso localmente. Ou seja, um fármaco inovador liberado hoje nos EUA pode só estar disponível no Brasil (ou outros países da região) quatro anos depois, um intervalo crítico para quem enfrenta uma doença grave.
Além disso, de 228 medicamentos examinados no estudo, apenas 130 estavam disponíveis em pelo menos um país latino, e somente 86 em todos os oito países analisados. Esses números revelam uma lacuna de acesso importante e a necessidade de ação coordenada para reduzi-la.
Do ponto de vista regulatório, a ANVISA nos últimos anos implementou esforços para agilizar aprovações e harmonizar procedimentos internacionalmente. Em 2021, adotou participação no Projeto Orbis, uma iniciativa de agências reguladoras globais para avaliação simultânea de medicamentos oncológicos.
Uma pesquisa conduzida pela Interfarma em 2024 trouxe uma notícia alentadora: em um recorte de poucas semanas (25 de junho a 17 de julho de 2024), a ANVISA concedeu 20 aprovações regulatórias mais rapidamente que FDA e EMA (agência europeia), em grande parte referentes a novas indicações e usos ampliados de medicamentos já registrados. Cerca de 75% desses casos eram medicamentos biológicos, e a agilidade se deu justamente via colaboração internacional do Orbis. Esse resultado demonstra a capacidade técnica da agência brasileira e mostra que, em situações específicas, conseguimos sim acompanhar o ritmo dos grandes mercados.
Contudo, há obstáculos estruturais e legais que ainda impõem atrasos. Um exemplo é a exigência prevista na Lei 6.360/1976 de que, para registrar um novo medicamento no Brasil, a empresa apresente o Certificado de Produto Farmacêutico (CPP) do país de origem. Na prática, isso significa que se um laboratório descobre e desenvolve um medicamento aqui, ele precisará primeiro de aprovação no exterior para depois obter o registro nacional; e se descobre lá fora, muitas vezes espera obter aprovação no FDA/EMA antes de submeter à ANVISA.
Essa exigência, um tanto anacrônica, pode retardar a chegada de novas terapias no caso de produtos inovadores, pois o Brasil abdica de avaliar de forma simultânea com EUA/Europa e acaba seguindo-os. Há discussões em andamento sobre atualizar essa legislação para permitir submissões em paralelo, o que tornaria o processo mais ágil sem comprometer a segurança.
Outro ponto a considerar é o incentivo econômico para as empresas lançarem no Brasil. O país tem controle de preços por meio da CMED (Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos), que fixa o preço máximo ao fabricante. Embora isso proteja contra valores abusivos, laboratórios às vezes julgam o preço autorizado baixo demais frente ao mercado internacional e optam por não lançar ou demorar para trazer o produto.
Além disso, o mercado brasileiro, embora grande em volume, pode ter restrições de acesso que limitam as vendas efetivas de um remédio caro (por exemplo, se o SUS não incorporar, fica restrito a poucos pacientes de planos de saúde ou desembolsos próprios). Assim, do ponto de vista comercial, algumas inovações não são priorizadas nas estratégias globais das farmacêuticas para lançamento imediato no Brasil.
Dito isso, há sinais positivos de mudança. A ANVISA vem passando por um processo de modernização, com maior adesão a práticas internacionais e esforço em reduzir prazos de análise. Até 2017, um pedido de registro de novo medicamento levava em média 270 dias para avaliação; reformas administrativas buscaram reduzir esse tempo. A indústria reconhece os avanços, ainda que cobre mais investimento em pessoal, o quadro de servidores da agência atingiu mínimos históricos, o que é um desafio operacional.
Em paralelo, a CONITEC (comissão do Ministério da Saúde que avalia incorporação de tecnologias no SUS) também tem refinado processos para avaliar novos medicamentos mais rapidamente e de forma transparente, embora ainda sobrecarregada pela quantidade de demandas.
Outro fenômeno brasileiro são as ações judiciais para acesso a medicamentos, a chamada judicialização da saúde. Quando um medicamento não está disponível no SUS (seja porque não foi incorporado ou porque sequer foi registrado no país), muitos pacientes recorrem à justiça para obter a medicação via governo. Isso acontece com frequência em relação a medicamentos oncológicos e de doenças raras de alto custo.
Por um lado, a judicialização funciona como válvula de escape individual para quem não pode esperar a burocracia; por outro, ela evidencia falhas no sistema de avaliação e provisionamento, e pode gerar desorganização orçamentária (a compra judicial muitas vezes sai mais cara e sem critérios de prioridade claros). O ideal é que menos pacientes precisem judicializar porque mais terapias estarão oficialmente disponíveis e cobertas pelo sistema, essa é uma meta que demanda coordenação entre ANVISA, Ministério da Saúde e indústria.
Em síntese, o Brasil enfrenta um intervalo entre a inovação e a utilização prática. Enquanto países desenvolvidos costumam receber praticamente todos os lançamentos globais (os EUA aprovaram mais de 800 novas substâncias desde 2005, e grandes mercados europeus por volta de 650), o Brasil ainda fica com uma fração. Fechar essa lacuna exige agilidade regulatória, modelos de acesso inovadores (como programas de acesso antecipado, parcerias público-privadas, produção local via transferência de tecnologia) e políticas de financiamento que suportem a introdução de terapias de alto custo. O resultado valeria a pena: reduzir o hiato terapêutico significaria brasileiros se beneficiando mais cedo de medicamentos que salvam e prolongam vidas.
Regulação, Acesso e Gargalos no Brasil
Uma análise das diferenças de acesso não estaria completa sem entender os gargalos específicos do Brasil na incorporação de inovações. Já discutimos alguns de cunho regulatório e econômico, mas vamos aprofundar em quatro áreas críticas: (1) processos de aprovação e incorporação, (2) financiamento e preço, (3) infraestrutura e capacitação, e (4) produção local e P&D.
1. Aprovação e Incorporação Regulatória: Aqui se incluem os trâmites na ANVISA (registro sanitário) e na CONITEC (incorporação no SUS). O registro pela ANVISA é pré-condição para qualquer comercialização no país e também para que Estados ou municípios possam adotar um medicamento por conta própria.
Após o registro, no caso do sistema público, a CONITEC avalia se aquele medicamento será oferecido gratuitamente pelo SUS. Esse duplo estágio significa que mesmo depois da aprovação sanitária, pode levar tempo até o remédio chegar de fato às prateleiras do SUS (se aprovado, e muitos não o são). Vimos pelo estudo da FIFARMA que esse segundo estágio (reembolso/incorporação) adiciona anos de espera em países latino-americanos.
No Brasil, a CONITEC tem por lei até 180 dias (prorrogáveis por mais 90) para emitir uma recomendação após a submissão de um pedido. Em alguns casos complexos, esse prazo se estende. Além disso, há questões orçamentárias: mesmo que a CONITEC dê parecer favorável, a efetiva oferta depende de alocação de recursos e logística de distribuição.
2. Financiamento e Preços: Medicamentos inovadores costumam ter preços elevados, refletindo os investimentos de P&D e valor agregado. O Brasil, via CMED, controla os preços máximos, buscando equilíbrio entre acesso e estímulo. Ainda assim, muitos desses tratamentos ficam fora do alcance de grande parte da população se não forem fornecidos pelo SUS ou pelos planos de saúde.
Planos privados, por sua vez, têm um rol obrigatório de procedimentos da ANS que define o que devem cobrir e novos medicamentos só entram no rol após avaliação, num processo que também leva tempo. Assim, pode ocorrer de um medicamento estar registrado no país, mas nem no SUS nem coberto por planos, restando apenas a via do desembolso direto.
Isso aconteceu com diversos oncológicos nos últimos anos e, mais recentemente, com os próprios medicamentos para obesidade (GLP-1): até o momento, nenhum tratamento farmacológico para obesidade é ofertado no SUS e planos de saúde também não costumam cobrir por não constar no rol. Resultado: quem quis aderir à moda do “emagrecimento via caneta” teve de pagar cerca de R$ 1.000,00 por mês de tratamento. Essa dependência do pagamento direto limita o acesso aos mais abastados e contribui para desigualdades.
A sustentabilidade do financiamento é um dilema global e no Brasil não é diferente: o governo precisa escolher criteriosamente quais inovações incorporar (dado orçamento finito), e a sociedade precisa debater até que ponto se deve custear medicamentos que às vezes chegam a custar centenas de milhares de reais por paciente/ano. Modelos de compartilhamento de risco e negociações de preço baseadas em volume ou desempenho clínico são tendências internacionais que o Brasil também começa a explorar para viabilizar o acesso sem quebrar o caixa.
3. Infraestrutura e Capacitação: Mesmo quando um medicamento inovador é aprovado e financiado, há desafios de implementação prática. Muitos tratamentos de ponta, especialmente biotecnológicos, requerem infraestrutura de saúde adequada: centros especializados, equipamentos para infusão ou manejo de efeitos colaterais, profissionais capacitados. Por exemplo, terapias celulares CAR-T (que reprogramam células do paciente para atacar o câncer) demandam centros altamente preparados; radioligandos para câncer envolvem manipulação de material radioativo; até um simples anticorpo monoclonal intravenoso requer que haja clínica ou hospital de infusão acessível ao paciente.
No Brasil, a oferta desses serviços é desigual regionalmente, com concentração no eixo Sul-Sudeste. Assim, incorporar uma inovação no SUS pode não se traduzir automaticamente em acesso amplo se não houver estrutura para oferecê-la em todo o país. Programas de capacitação de profissionais e investimento em centros de referência são necessários para acompanhar a inovação com qualidade de cuidado.
4. Produção Local e P&D Nacional: Um gargalo histórico do Brasil é a baixa participação na inovação farmacêutica global. Poucos medicamentos novos são desenvolvidos por aqui, a maioria esmagadora das inovações vem de centros nos EUA, Europa ou mais recentemente Ásia. Isso implica depender de importação e da estratégia comercial de multinacionais.
Nos últimos anos, o governo brasileiro buscou contornar essa dependência via Parcerias de Desenvolvimento Produtivo (PDPs), em que laboratórios públicos (como FIOCRUZ, Butantan) firmam acordo com empresas para transferência de tecnologia de medicamentos considerados estratégicos, passando a produzi-los localmente para o SUS.
Vários biológicos (inclusive biossimilares) e vacinas seguiram esse caminho. É uma forma de internalizar a tecnologia e garantir fornecimento sustentado, além de potencial redução de custo a longo prazo. Exemplos incluem anticorpos monoclonais para artrite reumatoide e câncer, cuja produção nacional se viabilizou por PDPs. Contudo, as PDPs enfrentaram percalços e dependem de seleção criteriosa (é preciso escolher bem quais produtos valem o investimento).
Paralelamente, há esforços para estimular a inovação doméstica, investimentos em pesquisas de fármacos, fomento a startups de biotecnologia e healthtechs, criação de polos tecnológicos. O ecossistema de startups de saúde no Brasil tem crescido, com empresas atuando desde telemedicina e prontuários eletrônicos até desenvolvimento de novos fármacos e diagnósticos.
A integração entre esses empreendedores, a academia (que gera conhecimento básico) e as indústrias estabelecidas pode gerar soluções adequadas às necessidades locais, possivelmente mais baratas ou disruptivas. Ainda estamos engatinhando nesse aspecto, mas há cases promissores, como pesquisas nacionais em vacinas contra dengue, Zika e COVID-19, ou empresas brasileiras desenvolvendo moléculas inovadoras para doenças tropicais negligenciadas. No longo prazo, fortalecer a P&D local reduz gargalos de acesso, pois o país teria mais autonomia para decidir prioridades e alocar inovação conforme seu perfil epidemiológico.
Em suma, fica claro que múltiplos fatores se somam para criar barreiras entre a inovação e o paciente brasileiro. Mas identificar esses gargalos é o primeiro passo para saná-los. Seja ajustando leis (como a do certificado de origem), modernizando processos na ANVISA e CONITEC, ou investindo na capacidade produtiva e de infraestrutura, o Brasil tem caminhos para encurtar a distância que hoje o separa do primeiro mundo em termos de terapias disponíveis.
Vale ressaltar também que o país apresenta contradições interessantes: mesmo com todas as barreiras, alguns avanços entram no mercado brasileiro de forma significativa, às vezes até surpreendente. Por exemplo, o IQVIA destaca que, entre os países emergentes (“pharmerging”), o Brasil sobressai no consumo dos novos medicamentos para obesidade, a ponto de praticamente liderar essa categoria fora do mundo desenvolvido. Em 2024, o uso de agonistas GLP-1 para emagrecimento nos chamados países “pharmerging” superou o dos principais países europeus, impulsionado quase totalmente pelo aumento do uso no Brasil.
Isso indica que, quando há grande demanda do público (no caso, alimentada por interesse estético e cobertura midiática), o mercado brasileiro responde, ainda que via setor privado e com pacientes pagando do próprio bolso. O reverso dessa moeda é que o custo recai sobre indivíduos, criando cenários de acesso informal e potencial uso indevido.
Tanto é que a ANVISA precisou intervir exigindo retenção de receita médica para a venda de canetas de semaglutida (Ozempic) e tirzepatida (Mounjaro), diante de uma procura explosiva e por vezes indiscriminada como drogas de emagrecimento. Ou seja, a inovação chega, mas de forma desorganizada e desigual. Só a integração dessas terapias ao sistema de saúde, com protocolos adequados, poderá garantir seu uso racional e amplo.
Terapias Inovadoras em Foco: Biológicos, Biossimilares, GLP-1 e Oncologia
Nesta seção, voltamos nosso olhar para quatro classes de terapias inovadoras citadas no escopo: medicamentos biológicos, biossimilares, agonistas GLP-1 e tratamentos oncológicos. Analisaremos como cada uma desponta nas tendências globais e como se situa no Brasil em termos de adoção, acesso e perspectivas futuras.
Biológicos: Revolução Terapêutica e Desafios de Acesso
Os medicamentos biológicos têm sido o motor de grande parte da inovação farmacêutica recente. Globalmente, sua importância só tende a crescer. No panorama até 2029, estima-se que áreas dominadas por biológicos, como imunologia (tratamento de doenças autoimunes, por exemplo) alcancem gastos anuais de US$ 234 bilhões.
Mesmo com a entrada de biossimilares freando um pouco o crescimento, imunologia ainda será o terceiro maior grupo terapêutico em gastos, atrás apenas de oncologia e diabetes. Em países ricos, medicamentos biológicos para artrite reumatoide, psoríase, doenças inflamatórias intestinais, asma grave etc. já são tratamentos padrão há anos e continuam a evoluir com novas gerações e indicações.
No Brasil, muitos desses biológicos chegaram com certo atraso, mas hoje integram protocolos de tratamento e até mesmo a lista do SUS em alguns casos. Por exemplo, o infliximabe (primeiro anticorpo monoclonal contra doença de Crohn e artrite) foi incorporado no SUS mais de 15 anos após seu lançamento mundial, mas hoje está disponível; o adalimumabe (usado em várias condições autoimunes) levou quase uma década para ser incorporado desde o registro, mas agora também é ofertado para algumas indicações. Ainda assim, persistem lacunas. Alguns dos biológicos mais modernos ou de segunda linha não estão acessíveis senão via planos privados ou compra judicial. O alto custo é, sem dúvida, o maior limitador.
É justamente aí que entram os biossimilares. Várias patentes de biológicos clássicos expiraram nos últimos anos (rituximabe, trastuzumabe, etanercepte, adalimumabe, entre outros), abrindo caminho para cópias. Na União Europeia, que liderou esse movimento, a concorrência de biossimilares resultou em redução de preços e ampliação do uso de biológicos. Países como Reino Unido, Alemanha e Noruega conseguiram economizar bilhões e reinvestir em mais tratamentos.
O Brasil, por sua vez, aprovou seus primeiros biossimilares por volta de 2015 (por exemplo, infliximabe e eritropoetina). Desde então, já há biossimilares de diversos monoclonais aprovados pela ANVISA. No entanto, a adoção prática desses biossimilares no mercado brasileiro ainda patina. Parte disso se deve a questões comerciais (o Brasil não implementou políticas ativas de substituição automática ou metas de uso como alguns países fizeram).
Outra parte vem de barreiras culturais e informacionais. Médicos e pacientes podem ter receio de trocar um biológico de referência estável por um similar, mesmo que a ciência mostre equivalência. Iniciativas como a Semana Global de Biossimilares (campanha anual para conscientização) têm ocorrido, inclusive com participação de entidades brasileiras, buscando educar sobre a segurança e vantagem dos biossimilares.
A expectativa é que, com o tempo, os biossimilares ganhem terreno também no Brasil, gerando economia e permitindo que mais pacientes sejam tratados pelo mesmo orçamento. Isso é crucial, por exemplo, em oncologia: biossimilares de trastuzumabe (para câncer de mama HER2+) e bevacizumabe (vários tumores) podem permitir a expansão dessas terapias a mais hospitais públicos.
Em resumo, os biológicos representam um salto de eficácia em muitas doenças, mas vêm com o ônus do custo. O Brasil está empenhado em torná-los mais acessíveis, seja via produção local (parcerias de Butantan, Biomanguinhos e empresas privadas para fabricar alguns desses agentes) ou via absorção de biossimilares. Nos próximos anos, veremos se as políticas implementadas serão suficientes para replicar aqui o sucesso que a Europa teve em ampliar o acesso a biológicos graças aos biossimilares.
Agonistas GLP-1: Uma Nova Era para Diabetes e Obesidade
Poucas vezes uma classe de medicamentos atraiu tanta atenção recente quanto os agonistas de GLP-1. Esses fármacos, como a semaglutida (nomes comerciais Ozempic® para diabetes e Wegovy® para obesidade) e a liraglutida (Victoza® para diabetes e Saxenda® para emagrecimento), mudaram o paradigma do tratamento do diabetes tipo 2, proporcionando controle glicêmico eficaz com perda de peso significativa, e agora estão revolucionando o manejo da obesidade em pacientes sem diabetes.
O relatório da IQVIA demonstra a dimensão desse impacto. Em 2019, as vendas globais de medicamentos GLP-1 totalizaram US$ 17 bilhões; já em 2024, alcançaram US$ 110 bilhões, um salto impressionante. Ou seja, em cinco anos adicionaram US$ 93 bilhões em vendas, tornando-se uma das classes mais lucrativas da indústria.
Importante notar que, desse crescimento, US$ 70 bilhões corresponderam a medicamentos inicialmente aprovados para diabetes (como Ozempic), muitos dos quais passaram a ser utilizados também por pessoas com obesidade. De fato, o uso “cruzado” é significativo: estimativas sugerem que em 2024 cerca de 12 a 15% do gasto global em medicamentos para diabetes foi em pacientes com obesidade usando GLP-1 para perder peso, especialmente com semaglutida e tirzepatida. Nos EUA, essas drogas fizeram tanto sucesso que geraram falta de estoque temporária em 2023 e grande discussão sobre cobertura pelos planos de saúde.
Para o futuro próximo, espera-se que os GLP-1 continuem em ascensão, cada vez mais impulsionados pela indicação de obesidade. Novas formulações (como versões orais e injetáveis semanais de maior dose) e possivelmente novas moléculas da mesma família (agonistas duplos/triplos) devem chegar ao mercado. A IQVIA projeta que as vendas destinadas ao tratamento da obesidade em específico dobrarão nos próximos cinco anos, de US$ 24 bi (2019-2024) para US$ 51 bi (2025-2029) em crescimento absoluto.
Isso sem contar o mercado de diabetes que já é grande. Tanto que, em termos de áreas terapêuticas, a obesidade deverá saltar para a 9ª posição em gastos globais em 2029 (US$ 76 bi), ultrapassando por exemplo o gasto com saúde mental ou doenças respiratórias. E se considerarmos o gasto com diabetes (2ª maior área, US$ 259 bi projetados), parte substancial dele será direcionado aos GLP-1 também. Ou seja, medicamentos baseados em incretina (GLP-1/GIP) dominarão provavelmente todo o panorama de doenças metabólicas.
No Brasil, a chegada desses medicamentos causou enorme repercussão. O Ozempic (semaglutida 1mg) foi aprovado pela Anvisa em 2018 para diabetes tipo 2, e rapidamente se popularizou não só entre diabéticos mas também off-label entre pessoas buscando perda de peso. A Novo Nordisk (fabricante) então submeteu a versão específica para obesidade, o Wegovy (semaglutida 2.4mg), que foi aprovada pela Anvisa em janeiro de 2023. Com isso, o Brasil tornou-se um dos primeiros países a aprovar o Wegovy fora dos EUA.
Entretanto, como mencionado, até o momento nenhuma das medicações para obesidade foi incorporada ao SUS. O custo nas farmácias (cerca de R$ 900 a R$ 1.200 por mês) restringe seu uso contínuo a quem pode pagar. Mesmo assim, a demanda disparou: relatos de clínicas e médicos indicam listas de espera para iniciar tratamento, e casos de falta pontual do medicamento foram observados, reflexo da escassez global de semaglutida em 2023. A procura foi tão grande que a ANVISA, preocupada com possíveis abusos e riscos de uso sem acompanhamento, passou a exigir retenção da receita médica para compra de qualquer agonista GLP-1 utilizado para emagrecimento.
A boa notícia para quem precisa dessas terapias é que há movimentos para torná-las mais acessíveis no Brasil. O Ministério da Saúde confirmou que iniciou em 2025 a avaliação da incorporação da semaglutida no SUS para pacientes com obesidade e comorbidades. A solicitação envolve especificamente o Wegovy, e a CONITEC tem até meados de 2025 para deliberar. Não há garantia de que será aprovado (a análise considera eficácia, segurança, custo-efetividade e impacto orçamentário), mas o simples fato de estar em pauta já é um avanço.
Paralelamente, um fator que pode mudar o jogo é que a patente do Ozempic/Wegovy expira em 2026. Com o fim da exclusividade, laboratórios brasileiros poderão produzir genéricos (ou biossimilares, no caso de ser um produto biológico sintético). O prefeito do Rio de Janeiro chegou a anunciar a intenção de fornecer Ozempic gratuitamente na rede municipal a partir de 2026, justamente contando com a queda de patente e disponibilidade de versões mais baratas. Embora seja uma promessa local e condicionada a recursos próprios, isso exemplifica a expectativa de que o custo dessas drogas caia nos próximos anos, permitindo uma oferta pública.
Um ponto importante é que mesmo nos países desenvolvidos os sistemas de saúde têm relutado em custear tratamentos para emagrecimento, dado o potencial de milhões de usuários e o custo altíssimo total. Nos EUA, muitos planos privados não cobrem Wegovy; em países europeus, há debate sobre se obesidade deve ser tratada com remédio no sistema público ou apenas com mudança de estilo de vida e cirurgias em casos graves.
A IQVIA observa que, globalmente, a cobertura por seguros/estado dos medicamentos de obesidade é bem menor que para outras doenças, e que a maior parte do volume tem sido de pagamento do próprio paciente, inclusive em países onde isso não era comum, indicando o apelo dessas terapias. Esse fenômeno de demanda diretamente pelo consumidor final é algo a ser considerado em políticas públicas: a obesidade é um problema de saúde populacional e, se há um tratamento efetivo, seria benéfico disponibilizá-lo amplamente. Porém, a conta financeira é pesada.
Talvez vejamos no Brasil abordagens focadas em perfis específicos (por exemplo, liberar no SUS para obesos mórbidos com diabetes descompensado, onde economias com complicações do diabetes possam compensar o custo do remédio). Em todo caso, os agonistas GLP-1 vieram para ficar, e a pressão para acesso só aumentará nos próximos anos, acompanhando a tendência global.
Oncologia: Inovações vs. Realidade de Mercado
A oncologia é tradicionalmente a área que mais concentra investimentos em P&D e lançamento de novos medicamentos. Como vimos, 307 das 1005 novas substâncias lançadas globalmente desde 2005 foram para câncer, a maior quantidade dentre todas as especialidades. Isso se reflete no gasto: em 2024, a oncologia foi o maior mercado terapêutico global e assim continuará.
A expectativa é que o gasto mundial com medicamentos oncológicos atinja US$ 441 bilhões em 2029, crescendo em média de 11% a 14% ao ano. Esse crescimento rápido deriva do fluxo contínuo de novos tratamentos lançados (imunoterapias PD-1/PD-L1, terapias-alvo para mutações específicas, terapias celulares etc.), combinados ao aumento da incidência de câncer e ampliação do acesso ao diagnóstico e tratamento em países emergentes.
Contudo, a adoção dessas inovações oncológicas é bastante desigual no mundo. Em termos de volume de tratamento (dias de terapia), a maior parte ainda é de medicamentos quimioterápicos tradicionais (citotóxicos). Globalmente, 73% dos dias de tratamento de câncer em 2024 foram com quimioterápicos, 15% com hormonais e apenas 12% com terapias-alvo modernas.
Nos países desenvolvidos, essa fatia de tratamentos alvo é maior (33% nos EUA, por exemplo), mas nos países pharmerging chega a meros 20% de terapias modernas e 80% de quimioterapia. Isso indica que nos emergentes como o Brasil, embora haja crescente acesso a inovação (ex: imunoterápicos já aprovados), o tratamento oncológico médio ainda se baseia principalmente em drogas mais antigas. Novos medicamentos muitas vezes ficam restritos a centros de excelência ou a pacientes com recursos.
No caso do Brasil, o SUS oferece um conjunto de quimioterápicos padronizados nacionalmente, e vem incorporando gradualmente algumas terapias-alvo importantes, mas com bastante parcimônia. Um avanço recente foi a incorporação de inibidores de CDK4/6 (palbociclibe, abemaciclibe) para câncer de mama avançado, algo aguardado por anos pelos pacientes. Em 2024, o Ministério da Saúde atualizou o protocolo de câncer de mama para incluir cinco novos procedimentos, entre eles essa classe de medicamentos inovadores.
Outro exemplo: em maio de 2024, o SUS incorporou o durvalumabe, um imunoterápico, para pacientes com câncer de pulmão de células não pequenas estágio III irressecável. Trata-se de um anticorpo anti-PDL1 que melhorou a sobrevida nessa população; sua oferta no SUS é um marco, porém inicialmente beneficiará poucas dezenas de pacientes (estimativa de 36 no primeiro ano, 187 até o quinto ano) devido aos critérios restritos. Isso ilustra a dinâmica: incorpora-se um medicamento caro, mas apenas para um subgrupo específico, cuidadosamente definido, garantindo que o impacto orçamentário seja controlado (no caso, <200 pacientes em 5 anos).
Ainda assim, muitos outros tratamentos oncológicos de ponta não estão disponíveis no sistema público. Imunoterápicos para melanoma avançado, câncer de rim, e vários tipos de tumores ainda não foram incorporados. Terapias-alvo de última geração para doenças como câncer de pulmão mutado (ALK, ROS1, RET etc.) tampouco. Pacientes com essas condições dependem de liminares judiciais ou acesso via planos de saúde de alto padrão.
Mesmo nos planos, a situação não é plena: até 2023, os planos de saúde no Brasil não eram obrigados a cobrir medicamentos orais domiciliares para câncer que não estivessem no rol da ANS, levando muitos pacientes a acionarem a justiça para obter drogas-alvo orais (como osimertinibe para câncer de pulmão EGFR mutado), uma distorção que só foi parcialmente corrigida com nova legislação. O Instituto Oncoguia e outras entidades frequentemente apontam que o Brasil tem defasagem na oferta de tratamentos oncológicos modernos, o que impacta a sobrevida dos pacientes oncológicos em comparação com países desenvolvidos.
Olhando adiante, espera-se que o Brasil acelere um pouco a incorporação de novas drogas oncológicas, até pela pressão de sociedades médicas e pacientes. A CONITEC tem avaliando tecnologias como novos imunoterápicos para câncer de pulmão metastático e medicamentos para leucemias e linfomas, alguns receberam pareceres negativos (por custo-efetividade desfavorável), outros ainda pendentes.
Uma alternativa são os estudos clínicos: o Brasil participa de muitos "trials" internacionais de novos tratamentos de câncer, o que permite a alguns pacientes o acesso antecipado. No entanto, ensaios clínicos não são política pública e só beneficiam uma fração pequena de doentes.
Um ponto relevante é que o tratamento do câncer não envolve só remédios, mas uma rede integrada de diagnóstico e cuidados. De nada adianta ter o último medicamento se o paciente é diagnosticado tardiamente ou não consegue acessar um oncologista. Portanto, a luta por melhorar a oncologia no Brasil passa também por fortalecer a atenção oncológica como um todo, campanhas de rastreamento, agilidade nos exames, ampliação de serviços de radioterapia e cirurgia oncológica, etc. A inovação farmacêutica é parte importante, mas não única.
Resumindo, no front da oncologia temos uma dicotomia: globalmente, a ciência avança em ritmo acelerado (novas modalidades como terapias celulares, vacinas contra câncer em desenvolvimento, drogas personalizadas conforme marcadores genéticos). No Brasil, o sistema de saúde tenta absorver aos poucos esses avanços, porém esbarra em restrições financeiras e estruturais, adotando uma postura incremental.
A consequência é que muitos pacientes brasileiros ainda recebem tratamentos padrão de 10-20 anos atrás, perdendo a chance de melhores desfechos que as terapias mais atuais poderiam proporcionar. Reduzir essa defasagem exigirá investimentos direcionados e talvez modelos de acesso alternativos (por exemplo, negociações de preços especiais para o SUS, parcerias com organizações filantrópicas, ou programas de acesso gerenciados pelas empresas).
Perspectivas e Tendências: Brasil em um Contexto Global
Ao comparar o cenário brasileiro com as tendências globais delineadas pelo relatório do IQVIA, fica evidente que o Brasil terá que navegar com atenção os próximos anos para aumentar acesso às inovações sem perder de vista a sustentabilidade. O relatório sugere alguns caminhos que podem igualmente valer para o país:
Crescimento focado em inovação e acesso: O gasto farmacêutico brasileiro deve continuar crescendo acima da média global. Projeções apontam que a América Latina como um todo terá crescimento anual em medicamentos superior a 7% até 2029, puxado por recuperação econômica e expansão do acesso. O Brasil, em particular, deve se manter como maior mercado latino e um dos que mais crescem, embora com possibilidade de pressões para conter custos se o ritmo for elevado demais. Isso significa que veremos mais medicamentos sendo consumidos (em volume) e novas classes terapêuticas ganhando participação. Contudo, órgãos governamentais podem adotar medidas para “frear” gastos caso estes ameacem extrapolar recursos, seja via negociação de preços, seja postergando certas incorporações. Encontrar o ponto de equilíbrio é uma tarefa complexa de gestão em saúde que estará no centro das políticas nos próximos anos.
Difusão de biossimilares e genéricos avançados: Globalmente, como discutido, os biossimilares vão derrubar o crescimento de gastos em imunologia e outras áreas. No Brasil, espera-se um movimento análogo: conforme mais biossimilares de anticorpos chegarem e forem aceitos, o custo de tratamento de doenças reumatológicas, oncológicas e afins pode cair por paciente, liberando orçamento para cobrir terapias inéditas. Além disso, por volta de 2028-2030, alguns medicamentos inovadores da década de 2010 perderão patente (inclusive os primeiros imunoterápicos contra câncer). Preparar o terreno regulatório e produtivo para receber essas cópias será importante. O país já tem um setor robusto de genéricos químicos; seria desejável desenvolver também um forte setor de “genéricos biológicos” (biossimilares) doméstico, para concorrer e reduzir preços.
Adoção de novas áreas terapêuticas emergentes: Entre as maiores tendências globais para 2029 estão o avanço em neurologia (novos tratamentos para Alzheimer, depressão, doenças neuromusculares) e rara convergência entre farmacoterapia e outras tecnologias (por exemplo, medicamentos + dispositivos digitais, medicamentos personalizados via genética). O Brasil deve se beneficiar de alguns desses avanços, por exemplo, novas drogas para Alzheimer (como os anticorpos anti-β-amiloide aprovados recentemente nos EUA), poderão mudar o tratamento da demência se provarem eficácia clínica robusta. É fundamental que o país acompanhe esses desenvolvimentos científicos e estruture avaliações rápidas quando tais produtos chegarem, para definir se e como incorporá-los. A telemedicina e saúde digital também podem ajudar a ampliar o alcance de tratamentos inovadores (tele-oncologia, monitoramento de diabéticos por apps para otimizar uso de GLP-1, etc.).
Parcerias internacionais e regionais: Dado o caráter global da indústria, o Brasil deve continuar atuando em cooperação. Seja via Estudos clínicos (garantindo participação de centros nacionais nas pesquisas de fase 3, o que às vezes acelera acesso pós-aprovação), seja via convergência regulatória (como já faz no âmbito da ICH e outros fóruns), ou mesmo compras consorciadas regionais. Um exemplo deste último foi a discussão durante a pandemia de compras conjuntas de vacinas por países da América Latina para obter melhores preços. No futuro, isso poderia se aplicar a medicamentos de alto custo, com a união de mercados para negociação. O Brasil pode liderar iniciativas regionais dada sua dimensão, reforçando a ideia de fomentar acesso em países emergentes coletivamente.
Centralidade do paciente e valor em saúde: A tendência moderna é avaliar a inovação pelo valor que entrega: ganhos em sobrevida, qualidade de vida, redução de outros custos (como hospitalizações). Ferramentas de avaliação de tecnologias em saúde (ATS) cada vez mais sofisticadas ajudam a determinar se pagar determinado valor por um novo medicamento se justifica pelos benefícios clínicos. No Brasil, a CONITEC já adota análises de custo-efetividade e impacto orçamentário. Provavelmente, isso se intensificará, com possíveis acordos de compartilhamento de risco (pagamento baseado em resultado: o SUS só paga integralmente se o paciente de fato melhorar, por exemplo). Essa abordagem orientada a valor tende a guiar futuras negociações com fabricantes, principalmente para terapias ultracaras (casos de terapias gênicas de dose única que custam milhões de reais, por exemplo).
Em meio a essas perspectivas, o Brasil carrega um trunfo: um ecossistema de inovação em saúde crescente e colaborativo. Os atores desse ecossistema, startups, universidades e ICTs, investidores, órgãos de fomento, grandes empresas, compõem um tecido fundamental para transformar desafios em oportunidades. Cada gargalo pode inspirar soluções criativas: se faltam dados de mundo real para provar o valor de um medicamento no Brasil, healthtechs de big data podem preenchê-los; se há dificuldade de logística para distribuir um novo remédio em áreas remotas, talvez startups de cadeia de suprimentos em saúde ofereçam ferramentas; se o custo é alto, empresas nacionais podem buscar parcerias para produção local ou desenvolvimento de análogos inovadores.
O mercado de saúde brasileiro tem as condições para ser não apenas um importador de inovação, mas um ator protagonista. Somos um país continental, com 210 milhões de habitantes, um setor de saúde privado robusto e um sistema público universal. Isso nos dá volume e diversidade, condições interessantes para testar e implementar soluções em escala. Além disso, problemas locais (como doenças tropicais, altas taxas de obesidade, envelhecimento populacional) podem servir de catalisadores para que inovação “made in Brazil” surja com foco nessas áreas, e depois até conquiste o mundo.
Há exemplos históricos, como a liderança brasileira em pesquisa de dengue e HIV nos anos 90. Hoje, com tecnologias emergentes (inteligência artificial, biologia sintética, medicina de precisão), há potencial para saltos ainda maiores se houver investimento e coordenação.
A inovação farmacêutica e biotecnológica desponta nesta década como um fator-chave para a melhoria da saúde global, trazendo novas esperanças de tratamento para condições antes intratáveis. O relatório da IQVIA Institute delineia um futuro de acesso ampliado, uso crescente e gastos significativos com medicamentos até 2029, puxado por avanços em áreas como oncologia, doenças metabólicas e imunologia. Ao mesmo tempo, escancara o descompasso entre diferentes regiões, onde países como o Brasil ainda enfrentam um gap para atingir os níveis de acesso observados em nações desenvolvidas.
O cenário brasileiro, ao ser comparado internacionalmente, evidencia tanto desafios quanto oportunidades. Os desafios manifestam-se nos gargalos regulatórios, nos limites orçamentários e estruturais que retardam a chegada da inovação ao paciente. Já as oportunidades residem em nossa capacidade de aprender com as melhores práticas globais (como a adoção de biossimilares e modelos de avaliação de tecnologias) e de mobilizar o ecossistema local para buscar soluções adaptadas à nossa realidade.
Diferenças de acesso, regulamentação, lançamentos de medicamentos e adoção de terapias inovadoras não são meramente estatísticas, elas traduzem-se, na ponta, em anos de vida e qualidade de vida a mais ou a menos para milhões de pessoas. Reduzir essas diferenças é, portanto, um imperativo ético além de técnico. Felizmente, o Brasil dispõe de capital humano, instituições competentes e um setor de inovação vibrante prontos para contribuir nessa missão.
Os próximos anos possivelmente verão um Brasil mais ágil em aprovar e incorporar inovações, seja pelo amadurecimento da ANVISA e CONITEC, seja pela pressão social por acesso rápido (como no caso dos medicamentos para obesidade). Veremos também se conseguiremos aproveitar a onda de crescimento do mercado de saúde para fortalecer nossa indústria e pesquisa, diminuindo dependências externas.
A meta de nos tornarmos líderes regionais em inovação em saúde – um hub latino-americano de desenvolvimento e acesso – está no horizonte e é factível, contanto que haja coordenação entre governo, academia e setor privado.
Em conclusão, a importância da inovação farmacêutica e biotecnológica não pode ser superestimada: ela salva vidas, melhora a saúde pública e gera desenvolvimento econômico. Mas a inovação só cumpre seu propósito se chegar de fato às pessoas que dela necessitam. Que possamos, como país, encurtar o caminho da invenção ao tratamento, derrubando barreiras e construindo pontes, regulatórias, financeiras e de conhecimento, para colocar o Brasil no mapa dos protagonistas da saúde global.
A jornada descrita ao longo deste artigo mostra que, apesar dos obstáculos, o Brasil tem um imenso potencial para crescer em inovação e acesso à saúde. O Instituto Brasileiro de Inovação em Saúde - IBIS atua como um hub conectado de ciência, tecnologia e inovação em saúde, aproximando startups do mercado, apoiando decisões de investidores com inteligência de dados e auxiliando corporações e governo a encontrarem soluções inovadoras. O futuro da saúde brasileira depende de colaboração e visão ousada!
Referências:
IQVIA Institute – The Global Use of Medicines: Outlook through 2029 – Increasing Access, Use, and Spending: https://www.iqvia.com/insights/the-iqvia-institute/reports-and-publications/reports/the-global-use-of-medicines-outlook-through-2029
IQVIA Institute – Dados globais de novos medicamentos e acesso desigual.
IQVIA Institute – Crescimento por áreas terapêuticas e projeções (Oncologia, Diabetes/Obesidade, Imunologia).
IQVIA Institute – Tendências de adoção de GLP-1 globalmente e papel do Brasil.
MIT Technology Review (Brasil) – “Biossimilares: a expansão das cópias de medicamentos biológicos”.
Fifarma – Indicador WAIT 2023 – Tempo de espera por medicamentos oncológicos na América Latina.
Agência Gov/Anvisa – Pesquisa Interfarma sobre desempenho da Anvisa vs FDA/EMA.
CNN Brasil – “Ministério da Saúde vai avaliar Ozempic no SUS no 1º semestre de 2025”.
Ministério da Saúde – Notícias de incorporações (durvalumabe no SUS, etc.).
Portal Gov.br – Resolução Anvisa sobre retenção de receita para GLP-1.
Câmara dos Deputados / Oncoguia – Debates sobre incorporação de oncológicos (relatos gerais).
Dados de domínio público (ANVISA, CMED, Conitec) sobre prazos e processos.

por Marcio de Paula
Instituto Brasileiro de Inovação em Saúde - IBIS




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