IA na Saúde Pública: Avanços, Lacunas e Oportunidades do Plano Brasileiro de Inteligência Artificial
- Alma Mater Cosméticos
- 15 de jun.
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A inteligência artificial (IA) desponta como uma aliada transformadora na saúde pública, capaz de aprimorar diagnósticos, otimizar recursos e personalizar tratamentos. Reconhecendo esse potencial, o Brasil lançou recentemente, a versão final do Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA) 2024–2028, também chamado “IA para o Bem de Todos”.
Com investimento previsto de R$ 23 bilhões até 2028, o PBIA busca posicionar o país entre os líderes globais em IA, orientando a tecnologia para resolver desafios sociais e melhorar o bem-estar da população. Um dos focos centrais do plano é a área da saúde – especialmente a saúde pública e o Sistema Único de Saúde (SUS) – dada a vasta quantidade de dados de pacientes e a diversidade genética única da população brasileira.
Neste artigo, avaliamos os principais pontos do PBIA voltados à inovação em saúde, identificando lacunas do plano e propondo caminhos estratégicos. Também traz exemplos internacionais (Reino Unido, Estônia, Cingapura, entre outros) que podem inspirar políticas e iniciativas para que Brasil alavanque seu potencial em IA na saúde.
Inovações em Saúde no Plano Brasileiro de Inteligência Artificial
O PBIA enfatiza a modernização do SUS através de IA, com sete ações de impacto imediato dedicadas à saúde pública. Essas iniciativas visam resultados em 12 meses e aproveitam a ampla base de dados do SUS.
Entre elas destacam-se: Prontuário Falado no SUS (uso de IA para transcrever automaticamente teleconsultas médicas), IA para Decisões de Compras de Medicamentos (auxílio na gestão de compras públicas de fármacos), Otimização de Diagnósticos no SUS (IA para diagnósticos mais rápidos e precisos em condições críticas como AVC, pneumonia, câncer e tuberculose), IA em Saúde Bucal (tecnologia para melhorar serviços odontológicos e detectar câncer oral), Detecção de Anomalias em Procedimentos (identificação de irregularidades em faturamento e procedimentos hospitalares), Suporte à Gestão de Processos de Judicialização (uso de IA para gerenciar ações judiciais de saúde, prevenindo litígios) e Idoso Bem Cuidado (plataforma de IA para promover cuidados da população idosa).
Essas frentes, além de sinalizar o compromisso do PBIA em aplicar IA diretamente nos serviços do SUS, visa desde ganhos de eficiência administrativa até melhorias clínicas. E os impactos esperados dessas inovações incluem diagnósticos mais rápidos e assertivos (por exemplo, agilizando detecção de AVC), apoio inteligente à decisão em compras e logística de medicamentos, identificação de fraudes ou erros em procedimentos, além de melhorias em áreas específicas como saúde bucal e cuidados com idosos.
Em suma, o plano busca aproveitar a escala e capilaridade do SUS para que as soluções de IA beneficiem milhões de brasileiros. A ministra de Ciência, Tecnologia e Inovação, Luciana Santos, destacou que a saúde é um dos setores mais contemplados no PBIA e que a pandemia de Covid-19 evidenciou a urgência de reduzir dependências tecnológicas externas.
De fato, R$ 435 milhões foram alocados para essas ações imediatas em nove setores prioritários – sendo a saúde um dos principais – com entregas de curto prazo. Além disso, soluções em saúde pública e SUS estão listadas pelo PBIA como uma das nove áreas em que o Brasil pode exercer liderança estratégica em IA, reforçando a prioridade da saúde no esforço nacional de inovação.
Dados do SUS e Perfil Genético: diferenciais do Brasil
Um trunfo notável do Brasil para IA em saúde é o próprio SUS, que há décadas coleta dados de uma população de mais de 200 milhões de habitantes, abrangendo enorme diversidade étnica e regional. Segundo estudo do NIC.br/Cetic.br, o SUS representa um diferencial competitivo na obtenção de dados de saúde para IA, dada a capilaridade, escala e diversidade da população brasileira atendida.
As bases nacionais do SUS – se bem integradas e tratadas – fornecem matéria-prima rica para algoritmos treinarem de forma confiável, refletindo casos clínicos do mundo real em ampla variedade. Essa percepção é corroborada por especialistas, que veem enorme valor nos dados coletados pelo SUS e consideram sua utilização um passo importante rumo à integração e inteligência nos sistemas de saúde. Iniciativas recentes do Ministério da Saúde, como a Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS), já visam padronizar e conectar prontuários eletrônicos nacionalmente, preparando o terreno para aplicações de IA em larga escala ao permitir a troca segura de informações entre pontos de atendimento.
Outro ativo estratégico é o perfil genético diverso da população brasileira. Fruto de séculos de miscigenação, o genoma brasileiro possui variantes únicas que podem embasar descobertas científicas e aplicações de medicina de precisão. Um estudo recente sequenciou o DNA de 2.723 brasileiros de várias regiões, identificando 8,7 milhões de variantes genéticas não mapeadas anteriormente. Isso demonstra o quão singular e pouco explorado é o patrimônio genômico nacional – um “apagão genético” que começa a ser iluminado pelos pesquisadores brasileiros.
Em 2020 foi lançado o Programa Genomas Brasil, com a ambição de mapear 100 mil genomas de brasileiros, inserindo o país no mapa da genética de populações. Embora o PBIA não trate em profundidade da integração entre IA e genômica, essa convergência é promissora: algoritmos podem cruzar dados genéticos com históricos clínicos para prever riscos de doenças e orientar intervenções preventivas personalizadas.
Em países avançados, tais iniciativas já apresentam resultados concretos. Na Estônia, por exemplo, 20% da população teve o genoma sequenciado e vinculado aos registros nacionais de saúde (incluindo banco de câncer, causas de óbito, dados hospitalares, hábitos de vida etc.). Com essa base integrada, o governo estoniano conseguiu reduzir a idade de início da mamografia para mulheres geneticamente predispostas ao câncer de mama e diagnosticar precocemente doenças raras antes impossíveis de identificar.
O Brasil pode se inspirar nesse modelo, unindo esforços do PBIA com programas genômicos para alavancar uma medicina de precisão orientada por IA – sempre respeitando a ética, o consentimento informado e a proteção de dados sensíveis.
Lacunas e Desafios do PBIA na Área da Saúde
Apesar de seus méritos, o PBIA traz lacunas importantes no tocante à saúde. Especialistas alertam que, sem suprir esses pontos cegos, o Brasil pode repetir erros do passado em políticas de inovação. A seguir, destacamos algumas omissões e desafios a serem enfrentados:
Infraestrutura de Dados e Interoperabilidade: O plano reconhece a necessidade de nuvem soberana e supercomputadores, mas não detalha como preparar a infraestrutura específica do setor saúde. Hoje, muitos dados do SUS ainda estão fragmentados em múltiplos sistemas (hospitais, unidades básicas, laboratórios) com padrões variados de qualidade. A integração via RNDS está em andamento, porém deficiências na qualidade e integração dos dados persistem e podem comprometer o funcionamento adequado da IA.
Será preciso investir na padronização de prontuários eletrônicos, conectividade das unidades de saúde (especialmente em regiões remotas) e em repositórios seguros para grandes volumes de dados clínicos.
Além disso, dispositivos e equipamentos de saúde precisam estar aptos a coletar e transmitir dados acurados (por exemplo, imagens de radiologia de boa qualidade para algoritmos de visão computacional). Sem essa base tecnológica robusta nos pontos de atenção do SUS, as soluções de IA propostas dificilmente alcançarão impacto nacional.
Regulação Específica e Segurança: O PBIA propõe um marco regulatório nacional de IA até 2027 com diretrizes éticas gerais, mas não aborda regulamentações específicas para IA em saúde. Este é um ponto crítico: como certificar e aprovar algoritmos médicos para uso clínico? Quem se responsabiliza em caso de erro da IA no diagnóstico ou tratamento?
Atualmente, órgãos como a ANVISA ainda carecem de frameworks dedicados para software de IA em saúde. A pesquisa do Cetic.br apontou as questões regulatórias específicas do setor saúde como uma das principais barreiras à adoção efetiva da IA. Será necessário desenvolver guias técnicos e sandboxes regulatórios para testar soluções de IA médica com segurança, bem como atualizar normas de telessaúde e saúde digital para incorporar sistemas de IA.
Outro aspecto é alinhar o PBIA com a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), que classifica dados de saúde como sensíveis e impõe requisitos para seu uso. O plano menciona princípios de soberania de dados, privacidade e ética, mas carece de detalhes operacionais de como garantir confidencialidade dos dados do paciente em larga escala. Vazamentos de informações de saúde ou usos indevidos de IA podem gerar danos graves – risco salientado pelos especialistas.
Portanto, reforçar a segurança da informação (armazenamento criptografado, controle de acesso, auditorias) e a anonimização/seudonimização de dados para pesquisa são medidas obrigatórias ao implementar o PBIA na saúde.
Colaboração com Startups e Ecossistema de Inovação: O PBIA prevê destinar quase 60% dos recursos (cerca de R$ 13,8 bilhões) para inovação empresarial, incluindo fomento a startups de IA. Contudo, o plano não explicita como essas startups – em especial as healthtechs nacionais – serão integradas às necessidades do SUS.
Há uma lacuna de articulação entre as soluções inovadoras que emergem no mercado e a adoção em larga escala pelo sistema público. Sem mecanismos ágeis de contratação, aceleração e teste de novas tecnologias em ambientes reais do SUS, corremos o risco de inovações ficarem restritas a projetos-piloto. Seria importante o governo criar desafios e editais específicos para IA na saúde, estimulando startups a resolverem problemas do SUS (por exemplo, detecção de epidemias, otimização de filas de espera ou suporte a decisão clínica em atenção básica).
Além disso, hubs de inovação como o Hospital Digital em Pernambuco ou iniciativas em hospitais universitários poderiam servir de campos de prova para validar algoritmos antes de uma expansão nacional. A ausência de menção a esses arranjos no PBIA sugere uma oportunidade perdida de conectar melhor o plano às estratégias do Ministério da Saúde e às parcerias público-privadas já em curso no complexo industrial da saúde.
Capacitação de Recursos Humanos na Saúde: O PBIA inclui ações de formação de 20 mil profissionais/ano em IA até 2028, mas não foca em capacitar equipes de saúde para lidar com IA. Para colher benefícios, médicos, enfermeiros, gestores e técnicos do SUS precisam ser treinados no uso seguro e efetivo dessas ferramentas. É preciso promover alfabetização digital e confiança na IA entre os profissionais, mostrando que a tecnologia vem para apoiar e não substituir.
Sem essa preparação, mesmo ferramentas excelentes podem encontrar resistências ou uso inadequado. A educação continuada em saúde digital deveria caminhar junto com a implantação das soluções tecnológicas – ponto que o plano não detalha.
Além disso, faltam políticas para retenção de talentos de IA no Brasil (o plano ambiciona reter, mas enfrenta a concorrência global), bem como incentivo para que pesquisadores atuem especificamente nos problemas de saúde nacionais. Integrar universidades, centros de pesquisa médica e empresas em projetos conjuntos seria uma forma de mitigar essa lacuna de capacitação aplicada.
Em resumo, o PBIA oferece uma direção promissora, mas precisa ser complementado por medidas concretas de implementação no setor saúde. Infraestrutura, regulação, proteção de dados, integração com startups e capacitação são pilares que exigem planos de ação detalhados. A ausência deles no documento indica que o sucesso da estratégia dependerá de políticas complementares do Ministério da Saúde e outros atores, sob pena das boas intenções não se traduzirem em mudanças reais no cuidado ao cidadão.
Caminhos Estratégicos para Alavancar a IA em Saúde no Brasil
Diante dos pontos levantados, há uma série de ações estratégicas que diferentes atores podem adotar para que o Brasil realize seu potencial de IA em saúde:
Governança e Planejamento Integrado: É fundamental alinhar o PBIA com uma estratégia nacional de saúde digital. Recomenda-se criar um comitê interministerial ligando MCTI e Ministério da Saúde, para coordenar investimentos e metas específicas (por exemplo, redução de filas ou melhoria de indicadores clínicos via IA). Esse comitê poderia definir casos de uso prioritários no SUS e acompanhar sua implementação, garantindo que as soluções de IA atendam às necessidades do sistema público. Além disso, deve-se institucionalizar a participação de conselhos éticos e da sociedade civil na orientação dessas políticas, conferindo transparência e aceitação social às inovações (especialmente quando envolvem dados sensíveis dos cidadãos).
Fortalecimento da Infraestrutura de Dados em Saúde: Acelerar a expansão e o aprimoramento da RNDS é um passo urgente. Todos os níveis de atenção (desde postos de saúde até hospitais terciários) precisam estar conectados e alimentando um repositório unificado de dados clínicos, atualizado em tempo real. Tecnologias de cloud computing segura – alinhadas à proposta da nuvem soberana – devem hospedar esses dados, garantindo performance para treinamento de algoritmos em grande escala.
O Brasil deve considerar a criação de Lagos de Dados de Saúde (data lakes) para pesquisa, com informações anonimizadas de milhões de pacientes, disponível a universidades, startups e empresas mediante acordos de uso responsável. Iniciativas assim existem em outros países: no Reino Unido, por exemplo, o NHS desenvolveu ambientes seguros para pesquisadores acessarem dados de pacientes de forma anonimizada, impulsionando estudos de IA sem violar privacidade. Aqui, parcerias com instituições como Fiocruz, datasus e hospitais-escola podem viabilizar ambientes similares, em que modelos preditivos sejam treinados com dados genuinamente brasileiros – o que aumenta a eficácia e reduz vieses importados.
Marcos Regulatório e de Segurança Claros: Antecipando-se à lei geral de IA, o Brasil pode criar diretrizes específicas para IA em saúde. Isso inclui estabelecer critérios para aprovação de software as medical device que use IA (definindo exigências de acurácia, validação clínica, monitoramento pós-implementação), além de protocolos de responsabilização e de explicabilidade de algoritmos utilizados em decisões médicas.
Um exemplo inspirador é o do Reino Unido, onde órgãos reguladores e o NHS elaboraram códigos de conduta para IA em saúde e um serviço de orientação regulatória para desenvolvedores. Também na Cingapura, a ênfase em IA explicável e segura é parte da estratégia nacional, reconhecendo que médicos e pacientes só confiarão na tecnologia se entenderem seus fundamentos e limitações.
O Brasil deve ainda reforçar a proteção de dados: ampliar a capacitação de gestores do SUS em LGPD, investir em cibersegurança hospitalar (dados de saúde são alvos cada vez mais visados) e implementar ferramentas de detecção de vazamentos. Adicionalmente, práticas de privacy by design – como anonimização avançada e consentimento granular – precisam ser incorporadas no desenvolvimento de soluções desde o início.
Parcerias Público-Privadas e com Startups: Para aproveitar o talento inovador nacional, é estratégico criar pontes entre o SUS e o ecossistema de startups. O governo pode lançar programas nos moldes do NHS AI Lab britânico, que financia e testa inovações de IA em hospitais do NHS. De fato, o NHS conta com um laboratório de IA que já aportou mais de £140 milhões em projetos e criou um AI Award para acelerar soluções promissoras em saúde.
No Brasil, um equivalente poderia oferecer editais temáticos (por exemplo, IA para Atenção Básica, IA para Gestão Hospitalar) onde startups e grupos de pesquisa concorrem, recebendo recursos e acesso a dados não sensíveis do SUS para desenvolvimento. Além do financiamento, essas parcerias devem incluir ambientes de teste controlado: por exemplo, implementar um algoritmo de triagem em prontos-socorros de referência e medir resultados antes de escalar.
Grandes empresas e investidores também têm papel – corporações de tecnologia podem prover infraestrutura em nuvem ou expertise em IA, enquanto investidores de impacto podem apoiar startups alinhadas às necessidades do SUS. O objetivo é fomentar um complexo econômico-industrial da saúde em IA, onde inovação local resolve problemas locais e depois ganha o mundo. Essa sinergia entre governo, startups, universidades e setor privado cria um ciclo virtuoso de inovação aberta.
Capacitação e Cultura de IA na Saúde: Nenhuma tecnologia prospera sem pessoas preparadas. É preciso capacitar a força de trabalho da saúde em todos os níveis. Isso envolve desde incorporar conteúdos de ciência de dados e IA nos currículos de medicina, enfermagem e saúde pública, até treinamentos práticos para profissionais em atividade.
Médicos radiologistas, por exemplo, devem aprender a interpretar resultados de algoritmos de análise de imagens; gestores precisam saber usar ferramentas preditivas para alocar recursos; e profissionais de TI no SUS devem dominar novas plataformas de IA.
Paralelamente, capacitar também os especialistas em tecnologia sobre as peculiaridades do setor saúde – promovendo equipes multidisciplinares que falem tanto a língua médica quanto a algorítmica. Uma cultura de aprendizado contínuo deve ser estimulada, com compartilhamento de casos de sucesso e lições aprendidas nos projetos de IA em hospitais e unidades de saúde.
Além disso, envolver os pacientes e o público em geral é crucial: campanhas de comunicação podem esclarecer como a IA melhora o atendimento (por exemplo, reduzindo tempo de espera ou evitando erros), construindo confiança. Iniciativas de cidadania digital – ensinando a população sobre seus direitos de dados e como ferramentas de IA tomam decisões – também empoderam os usuários e aumentam a transparência.
Inspirações Internacionais para IA em Saúde
Várias nações já colhem frutos da IA aplicada à saúde, oferecendo lições valiosas para o Brasil. A seguir, destacamos alguns exemplos relevantes:
Reino Unido: Com um dos sistemas públicos de saúde mais avançados digitalmente, o Reino Unido lançou em 2019 o NHS AI Lab, dedicando cerca de £250 milhões para integrar IA no sistema de saúde.
Os resultados são tangíveis: hoje 90% das redes de AVC (derrame) no NHS utilizam IA, o que reduziu pela metade o tempo médio para iniciar tratamento e triplicou a proporção de pacientes que recuperam funcionalidades após o derrame. Algoritmos como o Brainomix e-Stroke analisam tomografias cerebrais em segundos, indicando ao médico o melhor curso de ação e agilizando decisões críticas.
Em outro front, o NHS financiou a implantação de IA em imagens para detecção precoce de câncer de pulmão em 64 hospitais, com £21 milhões dedicados a ferramentas que leem radiografias e tomografias mais rapidamente.
O governo britânico também desenvolveu um Código de Conduta para IA em Saúde e envolve os profissionais de saúde no desenho das soluções. A lição principal é que investimentos direcionados e governança clara permitem escalar a IA com segurança, gerando ganhos concretos para pacientes (menos tempo de espera, diagnósticos mais exatos) e para o sistema (otimização de recursos).
O Brasil, com um SUS de abrangência nacional, pode se inspirar nesse modelo de laboratório de IA ligado ao sistema público, adaptando-o às nossas dimensões e contexto epidemiológico.
Estônia: Este pequeno país báltico tornou-se referência mundial em dados de saúde e genômica. Desde 2000, a Estônia investiu em infraestrutura digital (99% das prescrições são eletrônicas) e criou um Biobanco Nacional que já coletou DNA de cerca de 200 mil cidadãos – impressionantes 20% de sua população.
O diferencial estoniano foi integrar completamente os dados genéticos ao sistema de saúde: o prontuário eletrônico nacional incorpora informações de DNA, permitindo que os médicos acessem, por exemplo, um relatório genético do paciente durante a consulta. Com ajuda de IA, cruzam-se esses dados com históricos clínicos e estilo de vida para gerar perfis de risco individualizados.
Assim, o país conseguiu, por exemplo, identificar mulheres com mutações associadas a câncer de mama e antecipar protocolos preventivos, como início mais precoce de mamografias. Também foram descobertas predisposições genéticas raras, possibilitando intervenções antecipadas em pacientes assintomáticos.
Importante notar que tudo isso foi feito com rigor ético: os estonianos implementaram consentimento amplo, governança com comitês de ética independentes e um portal cidadão (“Meu Genoma”) onde cada participante pode ver e gerir seus dados pessoais. A Estônia demonstra que, mesmo com recursos limitados, é possível inovar integrando IA, big data de saúde e genômica para melhorar a saúde pública.
Para o Brasil, que possui uma população muito maior e diversificada, o exemplo estoniano reforça a viabilidade de programas nacionais de genômica e medicina personalizada. Com a devida escala, poderíamos direcionar ações preventivas a subgrupos de risco (como fez a Estônia) e impulsionar pesquisas sobre doenças prevalentes na nossa população multiétnica – um campo em que a IA é essencial para analisar quantidades massivas de dados genéticos e clínicos em conjunto.
Cingapura: Conhecida por sua estratégia de Smart Nation, Cingapura elegeu a saúde como prioridade em sua Estratégia Nacional de IA. O foco do país asiático está em prevenir e gerir doenças crônicas (como diabetes e hipertensão) utilizando IA em larga escala.
Um dos projetos emblemáticos é o desenvolvimento de um escore de risco personalizado para cada cidadão, combinando dados clínicos, exames de imagem, hábitos de vida e até informações genômicas. A IA analisa esses dados para atribuir um risco calculado de o indivíduo desenvolver complicações cardiovasculares ou metabólicas, por exemplo, permitindo intervenções proativas.
Ao mesmo tempo, Cingapura implementa IA em ferramentas de autocuidado: aplicativos que lembram pacientes de tomarem remédios, monitoram dieta e exercício e orientam quando buscar ajuda médica.
Um caso de sucesso é o sistema SELENA+, adotado nacionalmente para análise automatizada de imagens de retina. Inicialmente concebido para detectar retinopatia diabética com eficiência 70% maior que a de avaliadores humanos, o SELENA+ agora está sendo expandido para prever riscos cardiovasculares a partir de sinais nos olhos.
A experiência de Cingapura mostra a importância de ter metas claras (no caso, reduzir a carga de doenças crônicas) e de integrar a IA tanto no nível clínico quanto no envolvimento do paciente em seu cuidado. Para o SUS, que lida com alta prevalência de hipertensão, diabetes e outras condições crônicas, essa abordagem pode inspirar programas nacionais de saúde preventiva orientados por IA – por exemplo, usando modelos preditivos para acompanhar hipertensos e diabéticos cadastrados na Atenção Básica, evitando complicações e internações desnecessárias.
Outros países igualmente oferecem aprendizados, do Canadá, que investe em centros de excelência de IA aplicada à saúde mental, até Israel, que tornou disponíveis bancos de dados anonimizados de suas HMOs para startups desenvolverem soluções médicas inovadoras. Em comum, as iniciativas bem-sucedidas combinam visão estratégica de longo prazo, investimentos sustentados, marcos regulatórios adequados e um ecossistema colaborativo entre governo, academia e empresas. Essa sinergia é exatamente o que o Brasil precisa cultivar em torno do PBIA e da transformação digital do SUS.
Conclusão
O Brasil está diante de uma oportunidade única de unir sua vocação em saúde pública – consagrada pelo SUS – à revolução da inteligência artificial. O Plano Brasileiro de IA estabelece os alicerces e demonstra vontade política em fazer da IA uma ferramenta para o bem comum.
No setor da saúde, os benefícios potenciais vão desde sistemas de apoio ao diagnóstico que salvam vidas por agilidade, até políticas de saúde preventiva mais eficazes guiadas por dados massivos e algoritmos avançados. No entanto, colher esses frutos exige ir além do papel: é preciso execução estratégica. Isso inclui investir na infraestrutura certa, ajustar marcos legais, proteger rigorosamente a privacidade do cidadão, estimular a inovação das startups e capacitar pessoas para trabalhar lado a lado com as máquinas inteligentes.
Felizmente, não partimos do zero. Temos o SUS como pilar, uma comunidade científica e de startups emergente em saúde digital, e exemplos internacionais que pavimentam o caminho. Caso o governo, universidades, empresas e sociedade civil atuem em conjunto – cada qual contribuindo com expertise e recursos – o Brasil pode posicionar-se na vanguarda da IA em saúde, desenvolvendo soluções em casa para os nossos desafios e exportando esse conhecimento para o mundo. Trata-se de habilitar uma nova era de saúde mais preventiva, personalizada e eficiente, sem abandonar os princípios de universalidade e equidade que regem o SUS.
Em última instância, o sucesso será medido pelo impacto na vida das pessoas: pacientes atendidos a tempo graças a um alerta de IA; comunidades onde a vigilância epidemiológica inteligente previne surtos; profissionais de saúde liberados de tarefas repetitivas para se concentrarem no cuidado humano; idosos monitorados em casa com segurança; medicamentos chegando onde são mais necessários, quando necessários.
Esses cenários estão ao nosso alcance se persistirmos no caminho da inovação responsável. O PBIA 2024–2028 é um chamado à ação – cabe a nós, enquanto nação, transformar seu potencial em realidade.
No Instituto Brasileiro de Inovação em Saúde - IBIS, acreditamos que a inteligência artificial possa ser uma aliada estratégica para transformar a saúde no Brasil, desde que conectada à ciência, à ética e às reais necessidades do sistema público e da população. Atuamos ao lado de startups, empresas, pesquisadores e formuladores de políticas para construir pontes entre tecnologia e impacto. Se você está desenvolvendo soluções inovadoras em saúde ou deseja apoiar essa transformação, estamos abertos a diálogos, parcerias e projetos conjuntos.
Para quem deseja se aprofundar, o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (versão final, 108 páginas) está disponível para download no site do MCTI/CGEE. Acesse o documento oficial neste link.

por Marcio de Paula
Instituto Brasileiro de Inovação em Saúde - IBIS
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