Patentes, GLP-1 e interesse público: um teste decisivo para a inovação em saúde no Brasil
- Alma Mater Cosméticos
- 7 de set.
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Em menos de uma semana, duas decisões judiciais opostas mudaram o destino da liraglutida no Brasil: primeiro, a Justiça Federal concedeu à Novo Nordisk a recomposição de mais de oito anos em uma de suas patentes; dias depois, o TRF-1 suspendeu o efeito em resposta a recurso da EMS. Esse vaivém judicial, que atinge diretamente medicamentos para obesidade e diabetes, expõe o dilema central do sistema de patentes brasileiro após a ADI 5529: como conciliar segurança jurídica para inovação e acesso equitativo à saúde?
O pano de fundo: a ADI 5529 e a redefinição do sistema de patentes
A decisão do Supremo Tribunal Federal em 2021, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5529, foi um marco na história da propriedade intelectual no Brasil. O tribunal derrubou a regra que permitia a prorrogação automática de patentes quando o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) demorava em concluir o exame. Até então, uma empresa que tivesse seu pedido de patente analisado por mais de dez anos após o depósito ganhava, automaticamente, uma extensão da exclusividade. A justificativa era simples: evitar que a morosidade estatal penalizasse o titular do direito. Mas, na prática, essa regra resultava em monopólios excessivamente longos, alguns ultrapassando duas décadas além do prazo ordinário.
A lógica do STF foi dupla. De um lado, reconheceu que o INPI tem gargalos estruturais que impactam a análise dos pedidos, algo inegável diante da crônica falta de recursos humanos e da complexidade crescente da biotecnologia e da farmacêutica. De outro, concluiu que a solução não poderia ser transferir o custo desse atraso para a sociedade. Extensões automáticas de prazo, sem qualquer análise de mérito, desequilibravam o sistema ao criar barreiras artificiais à concorrência e ao acesso a medicamentos essenciais. A corte, portanto, fixou um entendimento: monopólios devem ser temporários e previsíveis, e a ineficiência do Estado não pode justificar exclusividades indefinidas.
Contudo, o STF não fechou a porta para ajustes pontuais. A decisão sinalizou que, em situações excepcionais, poderia haver espaço para mecanismos que compensassem atrasos desproporcionais e injustificados do Estado, desde que devidamente fundamentados. No direito comparado, isso se aproxima do Patent Term Adjustment (PTA), prática existente em países como os Estados Unidos, que ajustam prazos quando a morosidade administrativa extrapola limites razoáveis. Essa ambiguidade abriu espaço para novas disputas judiciais, como a que agora se desenrola em torno da liraglutida, da Novo Nordisk.
A controvérsia da Liraglutida: decisões em poucos dias, impacto de longo prazo
A liraglutida é uma molécula que pertence à mesma família dos agonistas de GLP-1 que impulsionaram uma verdadeira revolução no tratamento da obesidade e do diabetes tipo 2. Comercializada como Victoza e Saxenda, tornou-se um dos pilares do portfólio da Novo Nordisk, empresa dinamarquesa que hoje ocupa posição de liderança global nesse segmento. Com a explosão da demanda por medicamentos dessa classe, qualquer decisão envolvendo patentes ligadas à liraglutida tem efeitos diretos sobre preços, disponibilidade e concorrência.
No dia 4 de setembro de 2025, a Justiça Federal em Brasília concedeu à Novo Nordisk a recomposição de 8 anos, 5 meses e 1 dia em uma de suas patentes relacionadas à liraglutida, alegando que o INPI demorou mais de 13 anos para concluir a análise. A decisão foi celebrada pela empresa como um passo para a “segurança jurídica”, garantindo que atrasos estatais não corroam o período efetivo de exclusividade. No comunicado oficial, a Novo sublinhou que a decisão estaria alinhada à própria leitura do STF na ADI 5529, que não teria proibido os ajustes pontuais, mas apenas a prorrogação automática.
Entretanto, apenas três dias depois, o TRF-1 suspendeu os efeitos da decisão por meio de liminar em resposta a recurso da EMS, uma das maiores farmacêuticas brasileiras e que já havia lançado versões sintéticas de liraglutida no mercado, como o Olire e o Lirux. A corte destacou o risco de prejuízo à concorrência e aos pacientes, ressaltando que prolongar monopólios em um momento de alta demanda por medicamentos antiobesidade poderia onerar indevidamente consumidores e o próprio SUS. Esse vaivém judicial evidencia como a fronteira entre estímulo à inovação e preservação do interesse público permanece instável.
O dilema da inovação: quando o tempo é inimigo da pesquisa
Para as empresas inovadoras, especialmente em biotecnologia, o tempo é um recurso tão valioso quanto o capital. Desenvolver uma molécula inédita pode levar mais de uma década, com investimentos que frequentemente superam bilhões de dólares em pesquisa, ensaios clínicos e regulação. Nesse cenário, cada ano de exclusividade é fundamental para viabilizar o retorno econômico desse esforço. Quando o Estado demora a conceder a patente, reduz-se a janela de exclusividade efetiva, justamente a fase em que a empresa pode explorar o mercado sem concorrência direta e recuperar parte dos investimentos realizados.
O argumento da Novo Nordisk e de outras empresas globais que acompanham de perto o caso é que o Brasil precisa dar sinais de previsibilidade e respeito à proteção intelectual se quiser atrair centros de pesquisa e ensaios clínicos. Sem mecanismos que compensem atrasos desproporcionais, o país reforçaria uma imagem de insegurança jurídica, afugentando investimentos em áreas de alta intensidade tecnológica. Não por acaso, hoje o Brasil participa de apenas cerca de 2% dos ensaios clínicos globais, um índice baixo para o tamanho de seu mercado e de sua população.
É nesse ponto que surge a proposta do PTA: ajustar, caso a caso, o prazo de proteção, sem voltar à lógica da prorrogação automática. Essa medida, embora razoável em tese, exige critérios objetivos para não se transformar em uma brecha que perpetue monopólios artificiais. O desafio é estabelecer parâmetros claros: qual seria o limite tolerável de atraso do INPI? Em quais condições a recomposição poderia ser concedida? E, sobretudo, como compatibilizar essa proteção com a urgência de acesso a terapias que já têm ampla demanda na saúde pública?
O dilema do acesso: preços, concorrência e saúde pública
Do outro lado da balança está o interesse coletivo em garantir que terapias eficazes cheguem ao maior número de pessoas possível. Os medicamentos da classe dos GLP-1 se tornaram símbolos de uma nova fronteira terapêutica contra obesidade e diabetes, mas também de uma disputa por acesso. O preço elevado limita a incorporação no sistema público e onera planos de saúde privados. Cada mês de monopólio adicional significa bilhões de reais a mais em potenciais custos para pacientes e pagadores.
A presença de concorrentes nacionais, como a EMS, que já colocou no mercado produtos de liraglutida com princípio ativo sintético, representa a promessa de maior competição e preços mais acessíveis. Uma decisão judicial que suspenda a entrada ou continuidade desses produtos afeta diretamente essa dinâmica. O risco, segundo os críticos das recomposições de prazo, é cristalizar monopólios em torno de moléculas cuja eficácia já foi amplamente comprovada, transformando atrasos burocráticos em barreiras artificiais para o acesso.
Além disso, há a questão de sustentabilidade do SUS. O Brasil é um país onde a prevalência de obesidade e diabetes cresce em ritmo acelerado, com projeções alarmantes para as próximas décadas. A incorporação de medicamentos de alto custo sem alternativas genéricas ou biossimilares compromete recursos já escassos, obrigando escolhas difíceis em políticas públicas. Nesse sentido, prolongar exclusividades em medicamentos de impacto epidemiológico relevante não é apenas uma questão de concorrência empresarial, mas de equidade e justiça social.
Impactos econômicos e estratégicos para o Brasil da extensão de prazos de Patentes GLP-1
As decisões em torno da liraglutida não se limitam a um caso isolado. Elas são observadas de perto por investidores, empresas farmacêuticas e centros de pesquisa internacionais como sinais sobre o ambiente de negócios no Brasil. Se o país adotar uma linha dura contra qualquer forma de recomposição, pode transmitir a mensagem de que não há previsibilidade para investidores em inovação radical. Por outro lado, se abrir a porta para extensões amplas e pouco reguladas, pode minar sua própria capacidade de garantir acesso universal à saúde.
A dimensão econômica é significativa. O mercado brasileiro de biotecnologia movimentou cerca de US$ 27 bilhões em 2023, com previsão de alcançar US$ 69 bilhões até 2030, crescendo a um ritmo anual de mais de 14%. O segmento de saúde é o principal motor desse crescimento. Decisões judiciais que afetam a dinâmica de patentes têm, portanto, impacto direto sobre essa trajetória, influenciando desde o apetite de investidores até a estratégia de internacionalização de startups locais.
Outro aspecto estratégico é a inserção do Brasil em cadeias globais de inovação. O país tem potencial para ser um hub de pesquisa clínica na América Latina, dada sua população diversa, sistema de saúde robusto e capacidade científica. Mas para isso precisa oferecer um ambiente regulatório claro, previsível e equilibrado. O caso da liraglutida será um termômetro: se o Brasil conseguir conciliar inovação e acesso, reforçará sua posição. Se pender demais para um dos lados, corre o risco de perder relevância global.
Cenários possíveis e suas implicações
O primeiro cenário é o da manutenção da suspensão concedida pelo TRF-1. Nesse caso, a concorrência segue seu curso, com os produtos da EMS permanecendo no mercado e pressionando preços para baixo. Esse desfecho favorece o acesso imediato, mas pode ser lido por multinacionais como um sinal de hostilidade a ajustes compensatórios, afastando investimentos futuros em pesquisa.
O segundo cenário é o da validação da recomposição em instâncias superiores, das patentes GLP-1, confirmando a tese da Novo Nordisk de que atrasos desproporcionais merecem compensação. Nesse caso, a exclusividade se estenderia por anos, adiando a entrada plena de genéricos e impactando o custo dos tratamentos. A mensagem ao mercado seria positiva em termos de segurança jurídica, mas negativa em termos de acesso e equidade.
Um terceiro cenário, mais equilibrado, seria o da solução intermediária: ajustes menores, condicionados a critérios transparentes e, possivelmente, a contrapartidas de acesso. Esse modelo permitiria reconhecer a necessidade de previsibilidade para investidores sem ignorar a pressão por ampliar o alcance dos medicamentos. Por exemplo, a extensão poderia vir acompanhada de programas de preço diferenciado para o SUS ou de cláusulas de licenciamento compulsório em situações de emergência sanitária.
7. O que está realmente em jogo
Mais do que a disputa entre duas empresas, o caso da liraglutida inaugura um precedente que moldará o futuro da biotecnologia em saúde no Brasil. O país precisa decidir se vai estabelecer regras claras para ajustes de prazo de patentes ou se vai se restringir à vedação ampla definida em 2021. Essa escolha não é trivial: dela dependem a atratividade para investimentos em inovação radical e a sustentabilidade do sistema de saúde diante da incorporação de terapias de alto custo.
A decisão também testará a capacidade institucional do Brasil de articular suas políticas de ciência, tecnologia e inovação com suas políticas de saúde pública. A coexistência desses dois interesses exige maturidade regulatória e visão estratégica. Não se trata de escolher entre inovação e acesso, mas de encontrar mecanismos que garantam ambos. A experiência internacional mostra que isso é possível: países que conciliam incentivos à pesquisa com políticas ativas de ampliação do acesso conseguem não apenas atrair investimentos, mas também reduzir desigualdades.
O caso da liraglutida, portanto, não é apenas sobre uma molécula ou uma patente. É sobre o lugar que o Brasil quer ocupar no cenário global da biotecnologia em saúde. Queremos ser um país que oferece previsibilidade e atrai inovação, mas também que assegura o direito constitucional à saúde. O equilíbrio entre esses objetivos é o verdadeiro desafio que se coloca.
A controvérsia sobre a recomposição da patente da liraglutida é o primeiro grande teste do pós-ADI 5529. O desenrolar do caso vai muito além da disputa entre a Novo Nordisk e a EMS. Ele definirá se o Brasil terá coragem e capacidade institucional de desenhar um modelo de propriedade intelectual que valorize a inovação sem abrir mão do acesso. A resposta não está apenas nos tribunais, mas na articulação entre Judiciário, Executivo, Congresso e sociedade civil.
O desfecho poderá ser visto, no futuro, como um ponto de inflexão. Se encontrarmos equilíbrio, poderemos construir um ambiente em que startups brasileiras, grandes multinacionais e o próprio SUS prosperem lado a lado. Se não, corremos o risco de ver o país encurralado entre a fuga de investimentos e a insustentabilidade do sistema de saúde. A história da biotecnologia em saúde no Brasil pode estar sendo escrita agora e a decisão sobre a liraglutida será lembrada como um dos capítulos centrais.
No IBIS, acreditamos que decisões judiciais e regulatórias como essa moldam o futuro das biotechs em saúde no Brasil. Monitoramos de perto cada desdobramento, produzindo análises estratégicas para empresas, instituições e formuladores de políticas.
Se a sua organização precisa entender os impactos dessa disputa em seus projetos de inovação, em estratégias de acesso ou em parcerias globais, fale conosco. O IBIS está pronto para apoiar com inteligência, rede de conexões e visão internacional.

por Marcio de Paula
Instituto Brasileiro de Inovação em Saúde - IBIS
