Imagine a seguinte cena: João, um brasileiro da periferia de São Paulo, está há semanas convivendo com uma dor insistente no peito. O receio de filas intermináveis e a incerteza de ser atendido no posto de saúde o fazem adiar a visita ao médico. Do outro lado do mundo, em Seul, Ji-hyun, uma trabalhadora sul-coreana, marca com facilidade sua consulta online e vai à clínica no mesmo dia. Enquanto Ji-hyun visita o médico cerca de 16 vezes por ano, João, como a maioria dos brasileiros, consulta um profissional de saúde apenas duas vezes ao ano.
Essa disparidade não é fruto do acaso. Por trás dessas diferenças há um mosaico complexo de políticas públicas, estruturas econômicas e desigualdades sociais. Hoje, vamos analisar o que podemos aprender com países como a Coreia do Sul e como transformar a realidade do Brasil.
Dois Mundos, Dois Sistemas
O que torna a Coreia do Sul um exemplo global? Para começar, o país adota um modelo conhecido como "fee-for-service" (pagamento por serviço), em que os médicos são remunerados de acordo com o número de consultas realizadas. Esse sistema, combinado com uma política de seguro de saúde universal que cobre mais de 70% dos custos médicos, cria um ambiente que incentiva as pessoas a buscar atendimento com frequência.
Já no Brasil, o cenário é outro. O SUS, orgulho nacional por garantir acesso universal, enfrenta desafios que limitam sua eficácia. A escassez de recursos, longas filas e desigualdades regionais muitas vezes afastam pacientes como João de buscar cuidados médicos regulares. Enquanto isso, cerca de 25% da população brasileira recorre ao sistema privado, que, embora mais ágil, luta contra a escalada de custos e enfrenta uma crise de sustentabilidade desde a pandemia de COVID-19.
O Peso da Desigualdade
A frequência com que uma pessoa vai ao médico está profundamente ligada à sua renda. Estudos mostram que os mais ricos no Brasil têm maior acesso a consultas médicas, mesmo quando a necessidade de atendimento é semelhante à de pessoas de baixa renda. Esse abismo reflete a desigualdade estrutural que permeia o país e se agrava nas regiões mais pobres e afastadas.
Na Coreia do Sul, políticas públicas minimizam essas barreiras. Com um sistema homogêneo, os cidadãos, independentemente de sua classe social, têm acesso semelhante a consultas médicas. Esse equilíbrio é algo que o Brasil pode mirar ao formular suas políticas de saúde.
Lições de Outros Países
A Coreia não é o único exemplo de como melhorar o acesso à saúde. Vamos observar algumas abordagens inspiradoras:
Telemedicina e Descentralização (Canadá e Suécia)
Em países como Canadá e Suécia, enfermeiros especializados e teleconsultas desempenham papéis fundamentais no cuidado primário. Isso reduz a dependência de médicos para problemas simples, liberando-os para casos mais complexos. No Brasil, a pandemia acelerou a adoção da telemedicina, mas é necessário avançar na regulamentação e expansão desses serviços, especialmente para áreas remotas.
Incentivo à Prevenção (Japão e Alemanha)
Em vez de focar apenas no tratamento de doenças, países como Japão e Alemanha apostam em programas de prevenção, como check-ups regulares financiados pelo governo. Esse foco na saúde preventiva não só reduz os custos do sistema, mas melhora a qualidade de vida dos cidadãos. No Brasil, ampliar campanhas de prevenção e integrar esses serviços às Unidades Básicas de Saúde (UBS) pode ser um divisor de águas.
Fortalecimento de Redes Locais (Chile e Portugal)
No Chile e em Portugal, o fortalecimento de redes locais de saúde, combinando tecnologia e recursos humanos, tem mostrado bons resultados no aumento da cobertura. O Brasil pode aprender com esses modelos ao investir na formação e fixação de médicos e enfermeiros em regiões carentes.
O Papel da Inovação
É aqui que entra o papel transformador da inovação. Um ecossistema de startups e tecnologia em saúde pode oferecer soluções práticas para o Brasil superar seus desafios. Imagine uma plataforma que integre agendamentos, teleconsultas e acompanhamento de pacientes em um só lugar. Ou dispositivos que monitorem condições crônicas remotamente, reduzindo a necessidade de visitas frequentes.
Casos nacionais como o InovaHC, do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, e o LAIS, do Hospital Onofre Lopes no Rio Grande do Norte, são exemplos brilhantes de como a inovação pode transformar o acesso à saúde. O InovaHC promove iniciativas que integram startups, inteligência artificial e telemedicina para aprimorar o cuidado ao paciente. Já o LAIS é pioneiro em tecnologia assistiva e sistemas de informação voltados para a saúde pública, com projetos que melhoram a gestão e a eficiência do SUS em várias regiões do país.
Repensando o Sistema Privado
O setor privado de saúde no Brasil atende aproximadamente 25% da população, o que equivale a cerca de 53 milhões de pessoas, segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Apesar de representar uma alternativa importante para quem busca rapidez e maior acesso a especialistas, o setor enfrenta desafios críticos que exigem reavaliação.
Os custos crescentes da saúde suplementar têm pressionado tanto operadoras quanto pacientes. Entre 2017 e 2022, os custos assistenciais das operadoras cresceram em média 13,7% ao ano, superando a inflação geral (IPCA), que foi de 4,6% no mesmo período, conforme a ANS. Esse aumento se reflete nos reajustes anuais dos planos, que dificultam a manutenção do acesso, especialmente entre as classes médias.
A pandemia de COVID-19 agravou esse cenário. Houve um aumento significativo na busca por exames e consultas represadas durante os meses mais críticos da pandemia, gerando picos de despesas assistenciais. Além disso, a incorporação de novas tecnologias e medicamentos – muitas vezes com custos elevados – tem impactado diretamente o equilíbrio financeiro das operadoras.
Apesar de atender uma fatia significativa da população, a saúde suplementar reflete desigualdades no acesso. Dados mostram que apenas 9% da população rural tem acesso a planos privados, em contraste com 34% da população urbana. Além disso, as regiões Norte e Nordeste possuem a menor cobertura, destacando a concentração desse mercado no Sudeste e Sul.
O Caminho Adiante
Melhorar o acesso à saúde no Brasil é uma missão complexa, mas possível. Algumas ações prioritárias incluem:
Aumentar o financiamento do SUS, garantindo que os recursos sejam distribuídos de forma equitativa.
Incentivar a inovação tecnológica, fomentando startups que desenvolvam soluções específicas para o setor de saúde.
Ampliar o foco na prevenção, investindo em educação e programas de saúde comunitária.
Descentralizar o atendimento, capacitando enfermeiros e outros profissionais para liderar o cuidado primário.
Promoção de Modelos Baseados em Valor Um modelo baseado em valor – no qual o pagamento é atrelado a resultados de saúde e não ao volume de serviços – pode ser a solução para reduzir desperdícios e otimizar recursos. Hospitais e operadoras que já implementaram esse modelo no Brasil, como o Hospital Alemão Oswaldo Cruz, têm reportado resultados positivos na redução de custos e melhora nos indicadores de qualidade.
Foco em Prevenção Investir em programas de saúde preventiva é essencial. Iniciativas de monitoramento remoto de pacientes com condições crônicas podem reduzir custos com hospitalizações evitáveis. Um estudo da Deloitte aponta que cada dólar investido em prevenção pode economizar até US$ 3 em custos futuros, reforçando o potencial de tais abordagens.
Adoção de Tecnologias Disruptivas A incorporação de soluções tecnológicas, como inteligência artificial e telemedicina, pode aumentar a eficiência operacional. A telemedicina, regulamentada no Brasil em 2022, já começou a transformar o mercado, permitindo o acesso a cuidados primários a custos reduzidos. Segundo a ANS, consultas remotas têm custos médios 40% menores do que as presenciais, sem comprometer a qualidade do atendimento.
Parcerias Público-Privadas (PPPs) A criação de PPPs na área da saúde pode ser um caminho para expandir serviços e dividir custos. Modelos como o aplicado no Hospital do Subúrbio, em Salvador, demonstram que é possível aliar eficiência privada a princípios de universalidade e equidade.
Customização de Planos e Microseguros Oferecer planos de saúde mais flexíveis e acessíveis pode ampliar o alcance do setor privado. O uso de microseguros de saúde, voltados para populações de baixa renda, é uma alternativa promissora. Essa estratégia já é aplicada em países emergentes como Índia e África do Sul, com impacto positivo na cobertura e na satisfação do usuário.
Além das soluções acima, o setor privado pode desempenhar um papel central no fortalecimento do ecossistema de inovação em saúde no Brasil. Parcerias com iniciativas como o InovaHC e o LAIS são exemplos de como tecnologia e pesquisa podem gerar novos modelos de atendimento. Startups de healthtechs, por exemplo, vêm desenvolvendo plataformas que integram serviços médicos e facilitam o acesso do usuário a um custo menor.
Investir na interoperabilidade de dados também é crucial. Um sistema integrado, que permita a troca segura de informações entre prestadores, operadoras e usuários, pode melhorar a coordenação do cuidado e evitar duplicações desnecessárias de exames e procedimentos.
O setor privado, embora essencial, precisa passar por transformações significativas para se manter sustentável e acessível. Combinando inovação, gestão baseada em valor e políticas voltadas para a equidade, há potencial não apenas para superar os desafios atuais, mas também para tornar o sistema privado um modelo a ser seguido. Afinal, a saúde suplementar no Brasil deve complementar e fortalecer os esforços do SUS, e não ser vista como um sistema paralelo ou exclusivo.
A História Continua: O Papel do IBIS
João finalmente decide ir ao médico. Ele chega cedo ao posto de saúde e, após horas de espera, é atendido por um profissional atencioso, mas sobrecarregado. Ji-hyun, por outro lado, realiza mais uma consulta rápida e retorna ao trabalho com a confiança de quem sabe que sua saúde está em boas mãos.
A realidade de João não precisa continuar assim. O Instituto Brasileiro de Inovação em Saúde - IBIS surge exatamente para somar forças com quem deseja transformar o acesso à saúde no Brasil. Nosso papel é articular conhecimentos, conectar talentos e apoiar soluções inovadoras para que histórias como a de João tenham um desfecho diferente.
O IBIS acredita que a mudança começa com ações conjuntas. Com esforços na construção de políticas públicas que envolvam toda a cadeia da saúde e compartilhe essas transformações, João, da nossa história inicial, poderia ter mais uma opção de atendimento à sua disposição, colaborando para um desfecho mais positivo na jornada por cuidados de saúde.
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Referências
Voronoi Visual Capitalist. "Ranked: How Often People Go to the Doctor, by Country." Visual Capitalist. Disponível em: https://www.visualcapitalist.com.
OECD. "Consultations with Doctors." OECD Data. Disponível em: https://data.oecd.org/healthcare/consultations-with-doctors.htm.
OECD. "The COVID-19 Pandemic and the Future of Telemedicine." OECD Health Policy Studies. Paris: OECD Publishing, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1787/ac8b0a27-en.
OECD. "Health for Everyone? Social Inequalities in Health and Health Systems." OECD Health Policy Studies. Paris: OECD Publishing, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1787/3c8385d0-en.
InovaHC. "InovaHC – Transformação Digital em Saúde." Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina da USP. Disponível em: https://inovahc.hc.fm.usp.br/.
LAIS (Laboratório de Inovação Tecnológica em Saúde). "Inovação e Saúde no Brasil." Disponível em: https://lais.huol.ufrn.br/.
World Health Organization (WHO). "Global Health Expenditure Database." WHO. Disponível em: https://apps.who.int/nha/database.
Eretz.bio. "Eretz.bio – Startups de Saúde e Inovação." Hospital Israelita Albert Einstein. Disponível em: https://eretz.bio/.

por Marcio de Paula
Instituto Brasileiro de Inovação em Saúde - IBIS
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